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#24 — Desabafos de uma semana sangrenta
Em que desabafo sobre sentimentos relacionados à Chacina do Complexo do Alemão e da Penha, a Operação Contenção.
Não sou de abordar pautas quentes porque quase sempre preciso de tempo para pensar e articular as ideias. Eu estou longe do RJ e não conheço pessoalmente ninguém de lá, mas impossível não ficar abatido e enojado com a Chacina do Complexo do Alemão e da Penha. Foi uma megaoperação na assim chamada Guerra às Drogas em que as Forças do Estado do Rio de Janeiro perderam 4 agentes (bem à lógica “baixa militar”, porque a operação foi um sucesso) e dentre os moradores do Complexo da Penha e do Complexo do Alemão já haviam contado 134 mortes até a última vez que eu vi.
Muita gente já está fazendo análise dos fatos. Por óbvio, não faz o menor sentido afirmar que as 134 pessoas eram bandidas ligadas ao tráfico. Mesmo para quem é ligado ao tráfico e morreu na operação, o devido processo legal foi completamente desrespeitado: sem investigação, sem provas, sem julgamento, sem presunção de inocência. Isso aí já não é novidade, uma vez que temos uma gigantesca população carcerária negra e pobre em prisão preventiva — ou seja, não houve condenação, só a prisão. E claro que não é legítima defesa dos policiais também… Isso nem se sustenta. Se fossem 134 pessoas armadas ameaçando a vida dos policiais, o número de baixas de cada lado seria maior (como numa operação de guerra mesmo). Esta megaoperação nem deveria ter sido feita, para começo de conversa.
Ninguém desmontou o tráfico de drogas e o crime organizado do Rio de Janeiro com esta chacina. Sem matar uma única pessoa, a Operação Carbono Oculto realizada pela Polícia Federal bloqueou bilhões de reais do PCC — e bilhões de reais bloqueados afetam sim o crime organizado, muito mais que a morte de gente pobre. Sobre armas, de que adianta a apreensão de armas ali na favela? Aquele não é o ponto de fabricação delas e nem mesmo o ponto de distribuição. Só na casa do vizinho do ex-presidente Jair Bolsonaro, na região do Meier, que não é uma favela, foram apreendidas 117 armas. 117 armas em uma casa parece mais um depósito de distribuição do que 118 armas em duas comunidades periféricas.
Do ponto de vista de desmontar o crime organizado e o tráfico de drogas, a Operação Contenção foi um lixo. Não atacou linhas de suprimentos do crime organizado, não bloqueou bens, não chegou perto de investigar o caminho do tráfico internacional de armas, nem o tráfico nacional de armas militares. Eu concordo que uma ação localizada a nível estadual não daria conta de desmontar um esquema a nível nacional, mas o Governo do Rio de Janeiro (e outros governos estaduais) também não pressionaram o governo federal com o problema da segurança pública e a necessidade de esforços federais.
Do ponto de vista de matar pessoas, foi excelente. E eu acredito que a intenção primária tenha sido essa mesmo.
Certo, eu não consigo ainda dizer o que é preciso para acabar com o crime organizado no Brasil. Não conheço a história do PCC e do Comando Vermelho. Conheço muito das políciais militares e das forças armadas em geral por vivência de ter um pai policial militar, ex-colegas de escola que se tornaram policiais militares, e o basicão que a gente aprende se prestar atenção ao treinamento do serviço militar obrigatório. Mas isso não chega perto do que pode esclarecer um pesquisador focado no assunto como o Almir Felitte. Não vou também teorizar sobre a jogada política eleitoreira do Cláudio Castro, governador do Rio de Janeiro. Já tem gente demais e bem qualificada fazendo todas essas análises e a minha não é necessária.
Hoje quero falar sobre como me sinto (de novo). Então é dia de
Na Newsletter #20 falei da lavagem de reputação e como isso afetou as reações à morte do fascista estadunidense Charlie Kirk. Em determinado momento, eu disse que embora não concordasse em nada com o assassinato dele (adiantou o quê? O movimento fascista estadunidense continua mais forte do que nunca), era impossível não sentir certo alívio de saber que ele não vai subir mais num palco para propagar ideologia supremacista branca (de novo, não adianta muito porque há muitos outros que vão elevá-lo a mártir e propagar essa ideologia mais ainda). Da mesma forma, eu compreendo o sentido de sentir alívio pela morte de um bandido armado com fuzil que te extorque e te ameaça constantemente (mas, de novo falando, vai adiantar nada, vai aparecer outro bandido armado com fuzil para substituir aquele que morreu).
Quando estamos sofrendo violência, queremos que ela pare, não importa como. É uma situação desesperadora. Mas acho que acaba aí a semelhança entre sentir um certo alívio na morte do Charlie Kirk e sentir alívio no “bandido bom é bandido morto”. Charlie Kirk foi assassinado por alguém que, supostamente, era mais fascista que ele e achava que Kirk não era fascista o suficiente. Não foi um tiroteio em massa, foi um assassinato planejado a uma pessoa. No caso da Operação Contenção, foi uma chacina que levou embora 134 pessoas. Teve bandido que morreu sim. Mas estudantes e trabalhadores também morreram junto. Fica difícil até de sentir aquele alívio ilusório do “pelo menos essa pessoa não vai fazer mais tal coisa ruim” quando você também tá sentindo o luto por saber que pessoas inocentes morreram a troco de nada.
Por um lado, fiquei satisfeito por saber que habito uma bolha online de pessoas que ou não falaram nada comigo, ou se manifestaram também com esse luto pela morte de inocentes. Por outro lado, ainda vi manifestações de apoio à chacina de pessoas que cresceram comigo (tipo compartilharem no instagram aquele vídeo do “Hoje o Estado demonstrou força…” vá a merda, sabe? Ninguém importante ou estratégico para o crime organizado foi detido).
Em algumas pessoas, vi só algo tipo o fenômeno da lavagem de reputação. Polícia = bem; bandido = mal. Favela tem bandido. Bandido bom é bandido morto, assim eu sou do bem. Preciso ser do bem, né? Quem quer ser do mal? E por aí vai, falando sem pensar muito que apoia a operação da polícia. A maior parte da população brasileira apoiou a Operação Contenção. Só vi a estatística, não vi ainda nem metodologia nem discussões, mas não é um número que me surpreende. Não dou conta de analisar agora o significado disso, mas do pessoal que eu conheço, é a vontade de ser do bem. É algo performático mesmo. Se o vizinho deles tivesse morrido numa operação dessas, acho que não apoiariam tanto, como é o caso do vídeo que viralizou daquele pastor do MDB.
E tem, obviamente, uma galera que é racista mesmo. Eu conheço, sei que é puro racismo. Sei de um pessoal que é simplesmente violento e entrou na polícia para ter licença para apontar fuzil na cara de gente preta sem que o resto da sociedade percebesse que são racistas (bom, eu sou preto e percebi desde a época da escola, né?). Como eu tenho a impressão de que mesmo a base do militarismo (os praças) estão passando por um novo processo de embranquecimento (ATENÇÃO! É impressão minha e ainda não tenho certeza do que tô falando), essa veia racista da polícia militar tende a crescer. E claro, isso me deixa com medo. O agente de segurança pública que deveria fazer eu me sentir seguro se torna uma ameaça. Não tem Chapolim Colorado para nos proteger.
Enfim, mas a maioria da minha bolha parece compartilhar meus sentimentos. O problema é que essa bolha é online. A minoria de pessoas que acham ótimo que “134 bandidos (sic) morreram” acaba sendo a maioria das pessoas que eu conheço pessoalmente. E isso traz um sentimento ferrado de solidão em meio ao desespero, de muito isolamento social.
Quando houve a Chacina do Jacarezinho, que deixou 28 mortos, eu tive uma discussão intensa e emocionalmente desgastante com meu pai. Afinal, questionar estas operações violentas geralmente cai numa ideia de inércia contra o crime. Como se as únicas opções fossem “subir na favela e deixar corpo no chão” ou deixar o crime organizado dominar.
Por isso, antes mesmo de podermos pensar sobre o caso específico (Chacina do Jacarezinho), meu pai já estava falando sobre nosso passado quando nós morávamos em favela em BH, sobre a insegurança, sobre como moradores se tornam reféns do crime e sobre como eu não sabia o que estava falando porque fui protegido disso, porque saímos da favela antes de eu ter idade o suficiente para entender o que acontecia (não moro em favelas desde os 5 anos de idade).
Na ocasião eu tentei direcionar a conversa com calma (coisa de psicólogo, a gente aprende e às vezes tenta fazer toda hora), começando pelo próprio território marginalizado: como surgiram as favelas? Mas então já estávamos nas acusações de que a favela do Vila Pinho em BH surgiu de assentamento do MST (quando tentei pesquisar depois vi que a ligação não é com o MST, mas com a Ocupação Nelson Mandela, e não é como se as pessoas do nada pensassem: “ah, vamos sair das nossas casas e empregos e ocupar um terreno e viver em condições insalubres pra depois vender drogas!”). Mas não deu para chegar na parte de enfrentar os problemas históricos de habitação, a gentrificação, a marginalização das pessoas negras pós-abolição que durou todo o século XX… A conversa virou pânico em torno das tragédias do crime organizado e no final meu tio, que estava perto, começou a chorar lembrando de amigos de infância que morreram para o tráfico e eu estava cansado emocionalmente. Ainda mais porque, no auge desse desgaste emocional, lançaram mão de um vídeo de faccionados com fuzis num churrasco dizendo que eram os jovens mortos na Chacina do Jacarezinho uma semana antes. Dias depois vi jornais noticiarem que o vídeo era falso, os jovens mortos não tinham nenhum envolvimento com tráfico de drogas ou crime organizado.
Não sei se ficou claro na minha fala até o momento, mas eu não tenho nenhum apoio, carinho, dó ou apreço pelo tráfico de drogas e o crime organizado ao redor dessa atividade (e outras que servem de apoio, como tráfico de armas, controle territorial, etc). Na minha visão, é uma coisa de empresa capitalista. Tem toda uma cadeia de produção e distribuição, com conflitos para manter o mercado consumidor e etc etc. Posso falar melhor sobre isso em outra ocasião, mas a diferença entre um traficante de drogas e a Tesla do Elon Musk é que o Elon Musk não precisa traficar armas ilegalmente, ele ponde contar com o Exército dos Estados Unidos da América para fazer o serviço de tomar os territórios estratégicos para garantir um bloco monopolista (esbocei um pouco a lógica na Newsletter #9, mas deixo para falar mais escrachado em outro dia).
Quanto às drogas em si, para mim elas podem gerar problemas de saúde pública (uso abusivo de substâncias psicoativas) e as pessoas nessa situação devem receber cuidado em saúde (posso falar melhor sobre isso em outro dia). Mas um usuário ocasional de alguma droga ilícita não é mais perigoso que um tabagista ocasional ou você que bebe uma cerveja ou um vinho num final de semana. E, se formos pensar em drogas de modo geral, como ficam essas pessoas que se automedicam sem prescrição médica? Ou quem toma um café, uma coca-cola ou um energético para aguentar mais um tempo no trabalho? Não vejo diferença entre essas pessoas e outras que usam maconha para relaxar de vez em quando. Tudo a mesma coisa. É um fenômeno humano que existe desde os primórdios e acredito que nosso papel é cuidar para que não haja uso abusivo, e quando houver, intervir para reduzir os danos. Qual é o sentido de criminalizar? Vejo sentido em desincentivar (como tentamos fazer com drogas ilícitas como o tabaco), mas criminalizar? Que bem está fazendo?
A criminalização está deixando um mercado enorme para o crime organizado explorar. E pior do que isso: o crime organizado tem toda a liberdade de se organizar logisticamente, produção e venda a nível nacional e até internacional, para depois escolherem o território mais vulnerável ligado a essa logística para fazer uma chacina e chamarem de “combate às drogas”.
É uma situação desesperadora. Eu sei que não tem a ver com drogas ou crime organizado. Tem a ver com pessoas neste país que são tratadas como inimigo interno há séculos (depois pesquisem “haitianismo”). Tem a ver com eu ser uma dessas pessoas. Mas estou neste lugar atual em que estou ilhado, isolado. Este é um lugar em que posso falar como me sinto, então é o que resolvi fazer.
Isso tudo é revoltante demais!
Na verdade, não fiquei muito no clima de colocar as atualizações. Vai ficar para uma próxima. No máximo vou só anunciar que saiu texto novo de minha autoria na VAL.
E por hoje é isso. Até a próxima.

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