- Asas à Prova do Sol
- Posts
- #20 — Lavagem de Reputação
#20 — Lavagem de Reputação
Falo sobre como as instituições cristãs acabam servindo para a manutenção do que há de pior na nossa sociedade e mostro a "newsletter" da Vanessa (é um vlog).
Lavagem de dinheiro é
é simular uma operação financeira para justificar valores obtidos por meios ilícitos ou não declarados. Um exemplo seria a emissão de notas fiscais falsas (por advogados, consultores, médicos...) de serviços não prestados de fato (logo, notas falsas) para justificar o recebimento de valores que, na verdade, foram recebidos por propina, venda de drogas ou simplesmente não declarados ao fisco no momento correto. É uma forma de se justificar a existência de valores ou bens obtidos de forma inidônea através de falsas operações idôneas.
Hoje vim falar de uma prática que, embora não seja ilegal, é tão sórdida quanto. A lavagem de reputação, quando alguém perigoso, mal intencionado, e/ou que seria inimigo de quem quer viver bem em comunidade se insere como se fosse alguém admirável. Vim falar sobre como lobos em pele de cordeiro surgem. Acho que isso acaba sendo um…

Em 10 de Setembro de 2025, morreu assassinato o Charlie Kirk, um político estadunidense do qual eu nunca tinha ouvido falar. Por mim, eu continuaria sem ouvir falar. Mas, se ainda estivesse vivo e sua influência ultrapassasse as fronteiras para chegar ao Brasil (como aconteceu com alguns outros do tipo dele, com o Jordan Peterson), eu poderia descrevê-lo como um fascista.
A palavra fascista pode estar banalizada demais (sei lá), então vou descrever melhor. Vamos começar por Charlie Kirk falando de direitos civis
Quando os negros dos EUA não tinham os mesmos direitos que eles têm hoje, havia menos homicídios, tinham menos invasões [a propriedade particular] (...) Os dados mostram que eles [os negros] estavam melhor na década de 1940 do que estão hoje.
Para referência, na década de 1940 estavam em vigência as Leis Jim Crow, que promoviam um regime de apartheid racial nos EUA. A fala do Charlie Kirk é a fala de um supremacista branco, que acredita que há uma ligação entre conduta moral e raça. O problema, para ele, é o fato de negros terem direitos (não me surpreende se, inclusive, ele dizer que negros tem mais direitos que brancos por conta de políticas afirmativas… se é que existem políticas afirmativas nos EUA).
Só esse posicionamento já mostra que Charlie Kirk seria meu inimigo. Não porque eu ache ele menos humano, mas porque eu sei que ele é muito humano. Ele tem condições de decidir sobre seus posicionamentos políticos e escolheu um que atrela características biológicas (cor de pele, traços e etc) a condutas consideradas criminosas. Se nós nos conhecêssemos, ele seria alguém que me trata como menos humano. E por mais que eu tentasse conseguir a aprovação dele, eu sei que eu nunca conseguiria ser branco. Ele teria no máximo pena de mim e torceria para que, no céu, Deus me transformasse em alguém branco (baseado em falas comuns de cristãos).
Mas bem, ele vai bem no combo esperado de um fascista: ataca pautas feministas argumentando que isso é alguma degradação moral, ataca pautas LGBTQIAPN+ pelo mesmo motivo, praticamente idealiza um passado mais capitalista, mais patriarcal, mais branco como um passado ideal em que os problemas sociais de hoje não existiriam.
Eu não tenho muita escolha senão odiar esse cara. A solução para ele não seria necessariamente morrer também. Ele poderia só parar de agir de forma a promover a morte de milhares de pessoas, parar de promover péssimas condições de vida de milhares de pessoas. Se ele fosse alguém que eu conhecesse pessoalmente, que estivesse na esfera de influência dele, que estaria sendo diretamente afetado por ele, eu diria que a solução seria ele me deixar em paz. Mas também acho que a probabilidade de o Charlie Kirk mudar de ideia seria a mesma probabilidade de Adolf Hitler mudar de ideia (e olha só, Hitler também era um ser humano, tá? Ele não é uma encarnação do mal não-humano, ele é 100% humano e isso é importante para saber que a culpa do holocausto recai também sobre uma ideologia colonialista que ainda está por aí).
Mas com isso tudo, por mais triste que tenha sido a situação de alguém ter que morrer, de uma criança ver seu pai morrendo e tudo o mais, é impossível para mim não sentir um certo alívio. Charlie Kirk pelo menos não vai ter a chance de aumentar sua esfera de influência em vida. Infelizmente vai em morte (e por isso assassinatos de opositores políticos não é uma boa estratégia). E isso não é uma desumanização.
Também é irônico a forma como a morte se deu. Ele defende armamento de toda a população e chegou a dizer que, se isso custasse a vida de algumas pessoas, era um preço que valia ser pago. Bem… Não foi um militante de esquerda que puxou o gatilho. E, segundo o próprio Charlie Kirk, o preço de algo assim acontecer vale a pena (fonte). Não sei se é um martírio e tal, talvez ele tenha morrido de um jeito condizente com o que ele acreditava (se é que ele acreditava mesmo no seu discurso, o que eu duvido, pra mim ele era um merda, odiei ter conhecido a existência desse cara).
Então assim… Um vídeo de humor ácido zoando a morte do Charlie Kirk não é artisticamente diferente da cena final do filme Bastardos Inglórios onde metralham o Adolf Hitler. Porque, deslocando agora nosso pensamento para representações artísticas, não é sobre bater o martelo de que vamos resolver tudo com assassinatos. É sobre desejar que ideologias que querem a nossa morte não existam. E, sinceramente, se aparece um maluco dizendo que gente como eu deveria ser segregada e ter menos direitos civis, não tem como eu nutrir empatia para ele. Quero mais é que ele vá se foder, vou ficar aliviado se ele deixar de existir — o que não necessariamente significa a morte, ele poderia só deixar de ser um maluco dizendo que gente como eu deveria ser segregada e ter menos direitos civis.
Gastei umas 1000 palavras para dizer que, por conta do seu posicionamento, Charlie Kirk era um merda. Isso é diferente de dizer que mulheres, transexuais, negros são uns merdas. Afinal, ser mulher, transexual, negro é algo relacionado ao ser. Você é isso e não tem como deixar de ser. Fascistas estão mais na dimensão do estar, não é uma condição que precisa ser permanente, eles podem deixar de ser fascistas quando quiserem. Então ele era um merda por esta questão de estar fascista, e não somos ingênuos de achar que ele iria deixar de estar fascista porque não havia nada o levando a isso. Podemos odiar o Charlie Kirk sem ter peso nenhum na consciência? (Podemos sim, não é um pedido de autorização, é um convite).
Mas o fato é que eu soube da existência desse merda que foi assassinado nos EUA (e olha, UM MONTE DE GENTE é assassinada no mundo inteiro o tempo todo por diferentes motivos. É triste sim, mas caramba, eu não fico sabendo de cada pessoa que foi assassinada no mundo). E eu soube disso porque óbvio que existe uma campanha por parte de quem também é fascista para transformá-lo num marketing. Existem muitos motivos pra essa campanha dar certo, mas tem um processo que me chama atenção pra caramba nisso: pessoas que, num geral, concordam comigo sobre o Charlie Kirk ser um merda sentem-se culpadas por sentir o mesmo alívio que eu senti. E essa culpa é pelo fato de, apesar de tudo, ele ser um cristão, e cristãos são boas pessoas.
Esse tipo de lavagem de reputação que ajuda numa campanha fascista que está usando o assassinato de Charlie Kirk como palanque para divulgação das mesmas ideias fascistas dele (transformando o homicídio em martírio), não é rara por aqui.
O recém-condenado Jair Bolsonaro é uma pessoa que homenageou um torturador. É uma pessoa que disse que seus filhos não namorariam uma mulher negra porque ele tinha dado educação a eles (!). Ele é uma pessoa que disse a uma colega deputada federal que, mesmo que fosse estuprador, não a estupraria porque ela não teria o mérito de ser estuprada por ele. É alguém que, durante uma pandemia global, riu de pessoas que estavam morrendo da doença (e isso no cargo de presidência da república). E ele cogitou sim o assassinato de opositores políticos, chegou a planejar e, por esse planejamento, foi condenado por tentativa de golpe de Estado. É outro merda. E, mesmo assim, um monte de gente passa pano pra isso e vota no cara pelo fato de ele defender os valores cristãos. Pelo fato de ele ser cristão.
O ex-jogador de futebol Robinho estuprou uma mulher na Itália. Mas, para além de ainda ter a simpatia das pessoas por ter sido um grande jogador de futebol, vai ter gente questionando se ele realmente cometeu o crime ou se ele realmente é alguém que faria algo assim de novo porque o cara virou evangélico.
E isso está mais próximo do que se imagina. Tenho um conhecido que fez medicina e se tornou um digital influencer. Nos vídeos, ele fala coisas como “eu bebia muito álcool, mas agora estou aqui te dando conselho para não fazer isso porque não é de Deus” e o mesmo com maconha. Ele sempre foi da igreja, a família dele era da igreja que eu frequentava na adolescência. Mas agora usa isso de ser crente para limpar sua imagem, dizer que “mudou”, e agora é alguém digno de receber atenção, aplauso, e admiração. É uma estratégia de marketing, mas segue na mesma linha que os anteriores — e, não surpreendentemente, ele também se alinha a quem martiriza Charlie Kirk e tal.
Na igreja que eu frequentava tinha um agiota. Daqueles que te ameaçam caso você não pague a dívida. Ele continua sendo agiota, e continua sendo da igreja. Na comunidade, entretanto, ele é respeitado porque está sempre falando de Deus e com a bíblia debaixo do braço, dizendo que vai orar por você e etc.
Pablo Marçal é um coach trambiqueiro, charlatão, estelionatário. Mas um monte de gente acredita que ele pode ser levado a sério porque ele é cristão.
Quantos Charlie Kirks tem sua reputação salva por cristianismo? Com certeza muitos. Você deve conhecer por aí várias pessoas fazendo lavagem de reputação na igreja.
Bom, não tô aqui para fazer uma análise maior que isso. É mais uma irritação que quis falar na newsletter. Afinal, as piores pessoas que eu já conheci estão na igreja, e eu conheci na igreja. Dentro da igreja, quando isso era apontado, sempre tinha alguém para dizer algumas frases (que eu vou reproduzir e responder aqui).
“Mas gente assim tem em todo o lugar”
Tem sim, mas as igrejas cristãs acabam tendo mais dessas pessoas sórdidas. O motivo é simples: as igrejas oferecem seus serviços de lavagem de reputação, então óbvio que vai todo mundo para lá. Se for um homem (porque geralmente funciona menos com mulheres, o cristianismo hegemônico ainda é muito patriarcal), ser cristão, subir num púlpito, e etc é o melhor jeito de ter sua reputação lavada (e não é no sangue de Jesus, hein?).

Olha aí o governador Tarcísio de Freitas que vai lá pregar numa igreja para lavar sua reputação de qualquer merda que tenha feito em seu governo.
O lugar de pecadores é aqui mesmo. A igreja é como um hospital, você já viu um hospital cheio de pessoas saudáveis? Hospitais tem pessoas doentes.
A ideia do hospital é dar algum tratamento para que as pessoas doentes fiquem saudáveis. E mesmo assim o hospital se configura no que chamamos de Atenção Terciária em Saúde, que é um nível de atenção à saúde que queremos evitar. Hospitais vazios seriam o ideal, e por isso existe a Atenção Primária a Saúde (que visa, dentre outras coisas, prevenção de doenças) e Atenção Secundária a Saúde (que vai tratar já de doenças, mas antes de elas se agravarem a um nível hospital).
Acho que para essa frase ser verdade, as igrejas deveriam ter essa noção de saúde também. Mas não dá para imaginar uma igreja que tenha “atenção primária” já que nem hospital ela é. As igrejas mais incentivam esses comportamentos ruins oferecendo sua lavagem de reputação do que evitam ou tratam.
Sobre o irmão agiota lá da igreja, nada nunca foi feito. Agora espera só alguém se declarar LGBTQIAPN+… Aí o bambu enfolha NA HORA. O irmão agiota vai falar como é um absurdo o “homossexualismo”, condenado pela bíblia, e todo mundo vai aplaudi-lo como a epítome da moralidade. Ele é um homem daqueles que não se compram e nem se vendem e essas baboseiras.
Enfim… Vou provavelmente continuar vendo sobre isso. Vou continuar tendo raiva. Mas dane-se, né? Fazer o quê.

Diários de uma Autista. Vanessa, minha esposa, resolveu ter sua própria newsletter. Mas ela acha melhor fazer vlog do que escrever — o que é uma boa, é mais fácil as pessoas assistirem um vídeo do que lerem um textão.
E, por hoje, eu acho que é isso. Então até mais.
Reply