#17 — Adeus, Pretinha

Era para ter uma atualização feliz, mas nem sempre coisas felizes acontecem

Hoje meio que é só

Fundo preto, um sinal circular de setas verdes, e a inscrição Atualizações.

Este exato momento em que comecei a escrever isso aqui é 1h25min do dia 05/09/2025. Eu acordei, chorei muito e não consegui dormir de novo.

Acho que é melhor começar do começo.

Desde que a gente se mudou para Uberaba, minha esposa queria adotar um cachorro. Ela já teve uma cadela no passado, anos antes de eu conhecê-la, chamada Jade. Cuidou dela muito bem por anos, mas a Jade infelizmente contraiu leishmaniose e precisou da eutanásia. Vanessa sofreu muito a perda da Jade.

Bem, a verdade é que Vanessa queria cachorro de novo desde antes de me conhecer. Ela só não tinha condições de cuidar, morando sozinha e trabalhando. Eu também tinha cachorros quando morava com meus pais: Fred, um vira-lata que está na família já há uns onze para doze anos; e Mercury, um yorkshire epiléptico que está na família há uns cinco anos. Eu tenho muitas e muitas memórias com o Fred. Ele esteve comigo desde a primeira vez que eu me apaixonei até o momento em que me casei, esteve comigo quando me formei no ensino médio, na orquestra e na faculdade, esteve comigo quando perdi minha avó paterna e depois quando perdi minha avó materna. Ele é um cachorro muito inteligente e sempre sabia quando eu estava triste. Ele parecia se preocupar comigo e sempre vinha ficar comigo nesses momentos (que, infelizmente, foram muitos porque eu era um autista sem diagnóstico que parecia estar com depressão o tempo todo).

Meus motivos para não querer cachorro envolviam a conviccção de que ainda não dou conta de cuidar bem dos bichinhos. Quando eu chamei o Mercury de yorkshire epiléptico não foi brincadeira. Quando ele completou três anos de idade, começou a ter crises fortes de epilepsia. Lá em Teófilo Otoni não tínhamos como bancar todos os exames veterinários capazes de detectar a causa e, desde então, a gente medica, fica de olho, e fica cuidando dele durante essas crises epilépticas enquanto nos preparamos para o momento em que o Mercury não vai resistir. Bom, ele já está resistindo há dois anos, mas isso não torna as coisas mais fáceis.

Daí desde janeiro meu combinado com a Vanessa era esse: a gente pode ter pets sim, mas pelo menos um de nós dois precisa estar em condições de dar total atenção e suporte. Eu tive o que foi, provavelmente, um burnout em 2023. Vanessa teve um burnout em 2024. Estamos ambos nos recuperando e, no primeiro semestre enquanto morávamos no Pará, ela ainda tinha que trabalhar como professora. As condições necessárias para adotar um pet só surgiram agora que sou concursado em Uberaba. Vanessa teve condições de arcar com os cuidados de um filhotinho e a gente também se viu numa situação financeira que permitia isso.

Domingo passado, dia 31/08/2025, teve uma feira de adoção de pets organizado por uma ONG. Não eram cães e gatos abrigados por essa ONG, mas resgatados por pessoas comuns com apoio da ONG. A feira de adoção era só um processo intermediário entre quem queria por filhotes para adoção e quem queria adotar filhotes.

Geralmente esse tipo de evento atrai muitas pessoas, mas ele estava bem vazio. Do nosso ponto de vista, foi longe. Praticamente atravessamos a cidade (até paramos no meio do caminho para comprar uma caixa transportadora). Mas do ponto de vista dos moradores mais antigos, Vanessa e eu é quem moramos longe. Aquela praça estava movimentadíssima, só não tinha tanta gente interessada em adoção de pets mesmo.

E foi assim que adotamos a Pretinha.

Cadelinha d pelagem preta com um lacinho com cores claras na cabeça.

A Francine, uma colega de trabalho, deu esse lacinho pra gente colocar na Pretinha. A Pretinha não gostou muito, mas pelo menos conseguimos tirar essas fotos.

Cadelinha d pelagem preta cm lacino na cabeça em cima de um colchão.

Sabe do que a Pretinha gostava? Desse colchão aí. Nossa, ela amava esse colchão inflável! Lugar favorito dela na casa.

Nossa preferência era por cadela, pois estamos numa casa alugada e cadelas fazem xixi agachadas. Cachorros macho poderiam manchar todas as nossas paredes, o que não seria legal. A preferência era por filhote, mais fácil de adestrar. O intuito era castrá-la assim que possível.

Daí chegou uma cadela filhote, nascida em 18 de Julho, com 2 meses de idade. E já disseram que estava com castração marcada (atenção neste detalhe!). Foi amor a primeira vista. Vanessa já tinha escolhido seu filhote, e era ela. Estávamos chamando-a de Pretinha porque ela tinha a pelagem toda preta (exceto por uma mancha branca do pescoço até o peito, parecendo uma gravata). Daí descobrimos que a moça que a resgatou também estava chamando-a de Pretinha e decidimos que esse era o nome dela: Pretinha.

Durante a assinatura dos termos de adoção, uma funcionária da ONG questionou Vanessa se ela já teve pets antes. Vanessa falou da Jade e, quando acabou dizendo que Jade morreu de leishmaniose, a funcionária da ONG fez umas perguntas bem invasivas quase num tom acusatório que parecia perguntar: “você não cuidou direito?”. Sabemos que existem muitas pessoas que fazem maus tratos com animais, pessoas negligentes, e aquilo fazia parte do trabalho dela. Mas deu raiva notar que ela estava remexendo logo numa ferida da Vanessa.

Jade foi, provavelmente, a primeira experiência de luto. A gente nunca para de sentir uma perda. No máximo a gente se acostuma, porque infelizmente a vida também é feita de perdas.

Mas ok, a Pretinha era uma filhote e ainda teria anos de vida. Estávamos animados e a levamos para casa. Claro que ela estranhou um pouco a mudança de ambiente, mas não demorou tanto para começar a brincar, ficar feliz quando nos via, querer vir no colo. Parecia que ficaria tudo bem.

Tivemos alguns dias felizes. Bem poucos, mas foram felizes. Rimos muito dela pensando que a bolinha era um ser vivo enquanto assistíamos ao processo de ela aprender que era um brinquedo. Rimos enquanto víamos ela latir para o próprio reflexo na porta de vidro. Acompanhamos todas as explorações que ela fazia pela casa. Pretinha era curiosa, nossa cadelinha superdotada. Nos afeiçoamos por sua personalidade dócil e manhosa, mas também inteligente e fácil de treinar. Em pouquíssimo tempo ela já sabia onde podia fazer suas necessidades e onde não podia.

Cadelinha d pelagem preta om mancha branca na barriga, deitada d barriga pra cima om o lacinho na barriga.

Ainda sobre o lacinho, ela tirava do lugar toda hora e daí rendeu essa cena engraçadíssima

Na terça-feira (dia 02/09) ela começou a recusar a ração e água. Pensamos que fosse a adaptação. Casa diferente, separada da irmã (já falo dela), ração diferente, não é incomum que filhotes fiquem tristes até entenderem que estão numa nova família e numa nova casa. Mas daí a Pretinha vomitou, e Vanessa foi checar a ração e um molhinho que deixa a ração mais gostosa. O molhinho era para cachorros adultos. Paramos com isso e Vanessa fez ovo cozido para Pretinha (ela comia na casa antiga).

Na quarta-feira (03/09) ela piorou. Vanessa ficou muito preocupada porque ela estava vomitando, se recusando a comer, e até para beber água era preciso dar direto na boca dela. Então levou Pretinha a uma clínica veterinária (que fica do outro lado da cidade também). A veterinária fez alguns exames. Ainda não temos o resultado de todos, mas o teste rápido para giárdia (um parasita que causa muita dor de barriga e diarréia, já fui infectado por esse antes) deu positivo. Vermífugo para toda a família, ondansentrona para Pretinha parar de vomitar e dipirona para a dor de barriga.

Cadelinha dormindo encolhidinhaa

Aí ela começou a ficar mais xoxa, mais encolhidinha

Quinta-feira (04/09) e a Pretinha não melhorou. Na noite da quarta para a quinta, vomitou algumas vezes. Vanessa quase não dormiu para cuidar melhor dela. Quando acordei de manhã, Pretinha ficou mais na varanda, porque ainda estava vomitando bastante. Mas eu achava que ela iria melhorar. Giárdia não é uma infecção que costuma ser tão grave (e a veterinária confirmou isso).

Pé de limão com uma cadelinha deitada embaixo delee.

Foto tirada quinta-feira (04/09) de manhã quando ela só quis ficar no quintal. Eu gastei alguns minutos procurando ela até achá-la debaixo do pé de limão.

Bom, é o momento de falar um pouco mais das condições em que recebemos a Pretinha e algumas coisas que a veterinária falou que não combinam com as informações fornecidas pela ONG.

Ela foi resgatada quando uma cadela de rua emprenhou e nasceu com o rabinho curto, como se tivesse sido cortado. Tem uma irmã idêntica (mas mais brava) que já tínhamos decidido adotar, o nome seria Docinho (em referência às meninas superpoderosas mesmo). A Docinho não estava na feira de adoção porque estava vomitando muito.

A ONG tinha orientado à moça que resgatou as cadelinhas a aplicar o vermífugo, orientou sobre o calendário de vacinação e marcou castração para as duas para o dia 10/09/2025. Elas já tinham tomado uma dose de vermífugo, mas ainda não tinham sido vacinadas porque a orientação era que as duas ainda estavam muito novinhas para se vacinar.

A veterinária disse que as duas provavelmente contraíram a giárdia durante uma chuva forte que teve na semana passada. Disse que as duas estão muito jovens para serem castradas — precisariam esperar completar 1 ano de idade, ou a castração poderia ocasionar em problemas no desenvolvimento. E também disse que, com 2 meses de idade, já deveriam ter tomado a primeira dose de vacina. Segundo a veterinária que nos atendeu, os anticorpos maternos de cachorros duram pelos primeiros 45 dias de vida. Depois disso, é necessário vacinar.

O que dá para concluir é: a Pretinha já estava doente quando nós a adotamos. A gente só não sabia disso e não estávamos preparados para lidar com isso. Mesmo assim, Vanessa deu um encaminhamento exemplar para a situação. Até descobrir o que era a doença conseguimos descobrir.

Mas de volta à quinta feira, dia 04/09. Não foi o suficiente. Pretinha não conseguiu tomar a medicação adequadamente, estava vomitando muito. Quando parou de vomitar, começou a evacuar muito. Não conseguia controlar a diarréia, saía pingando pela casa.

Eu já tinha ido trabalhar quando recebi a notícia de que, se ela não melhorasse, precisaria de vacinação. Estava atendendo uma criança no CAPS quando Vanessa ligou. Pedi licença para atender e ela contou que Pretinha mal estava conseguindo sustentar o próprio corpo. Recomendei que fosse interná-la então. Tinha terminado de atender quando recebi a mensagem de que Pretinha morreu. Parou de respirar.

Cadelinha d pelagem preta mito magrinha de costas.

Essa foi a última foto tirada. Vanessa estava cuidando dela, tentando dar água. Ela morreu instantes depois.

Ainda sou autista, então o nível de estresse subiu além da conta e comecei a sentir muito enjoo no serviço. Mas seugrei a onda, porque Vanessa também é autista e estava muito pior. Eu me preocupei demais porque a situação toda remete muito à Jade.

Pedi ajuda a minhas colegas de trabalho, fiz um atendimento rápido à mãe da criança que atendi mais cedo, e saí do serviço mais ou menos umas 15h. Fui para a clínica e encontrei Pretinha, já falecida, e Vanessa chorando muito. Recebemos demais orientações da veterinária, que disse que até agora sabemos da giárdia, que ressaltou (corretamente) que não foi culpa da Vanessa e nada disso. Filhotes são mais frágeis. Isso acontece. Ela já chegou até nós doente. A veterinária nos orientou sobre o que fazer com o corpo da Pretinha.

Levamos até a zoonoses de Uberaba. Permitimos que estudantes de medicina veterinária pudessem usá-lo para estudos. Voltamos para casa e choramos muito, muito mesmo. Limpamos as coisas, comemos e tomamos vermífugo. Tentamos dormir.

Acordei de madrugada para ir ao banheiro e não consegui dormir mais. Chorei muito de novo, e depois comecei a escrever este texto.

A Pretinha foi nossa cadela por quatro dias, ao todo. O sentimento de perda que estou vivenciando é parecido com outros que já vivenciei: quando perdi a vovó Deja, quando perdi a vovó Carlinda, quando meu amigo Henrique faleceu e quando soube que Haniel, um amigo que tinha feito durante o serviço militar, faleceu. Quatro dias já foram o suficiente para eu criar um laço afetivo com a Pretinha. Um laço que, agora rompido, dói.

É muito interessante como nossos sentimentos com outros seres vivos funcionam. Não precisam ser outros humanos. Nós podemos odiar insetos, podemos ter raiva dos pombos que fazem ninhos e cagam no nosso quintal todinho (outro dia conto sobre a Guerra do Pombo, que está acontecendo aqui), podemos ter medo de animais ferozes que nos matariam para se alimentar. Nós mesmos matamos outros animais para nos alimentarmos. Podemos fazer amizade e amar cachorros ou gatos. Amar tanto a ponto de vivenciar luto.

Queria elaborar mais essa reflexão dos nossos sentimentos e relações afetivas, mas agora essa ideia parece boba. Elaborar pra quê? Eu já estou sentindo. Não preciso apelar para o senso de moralidade que tem surgido em torno da proteção a pets (falam proteção a animais, mas a gente sabe que na verdade é proteção a pets, e só os pets bonitinhos de raça). A gente amou a Pretinha por esses quatro dias, então estamos sofrendo bastante.

sobre o luto, nunca tem muito o que ser falado. A gente aprende a conviver, mas é uma dor que não passa. A única coisa que tenho dito a mim mesmo e disse a Vanessa é que a gente segue a vida normalmente. Por seguir a vida normalmente, vamos chorar quando der vontade de chorar. Não é de todo ruim ter essa dor e chorar. Essa dor significa que tivemos uma história, que amamos esse alguém se perdeu, e que temos memórias felizes.

Um casal de pessoas negras de cabelos pretos cacheados segurando uma caadelinha de pelagem preta.

Essa era a foto que eu pretendia deixar quando, na parte de atualizações da newsletter de hoje, diria que tínhamos adotado uma cadelinha. A gente tava tão feliz!

Bom… Essa é a atualização de hoje. Não sabemos se vamos adotar a Docinho ou outro cachorro por agora. Acho que precisamos de um tempo.

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