A Lenda de Larzo — Capítulo 4

Capítulo 4 da história + making off

E continuamos com nossa História de Fantasia Genérica, projeto iniciado nesta newsletter. Atrasei essa semana porque precisei deixar meu notebook para fazer um upgrade no armazenamento, mas… Estamos aqui.

Você pode ler essa história também no Scriv, mas só aqui tem o making off.

Mas vamos de recapitulação então.

Anteriormente…

Depois de um dia inteiro refletindo acerca da oferta de Razeru, Larzo decide que quer ficar na Vila Amora. Não é um lugar perfeito, mas era o lugar que ele escolheu para ser seu lar. Razeru, por outro lado, alertou-o que não seria tão simples. Disse que o Império estava movendo forças estranhas, fazendo regiões inteiras especializarem sua produção, se tornando co-dependentes. Segundo Razeru, a paz que Larzo queria estava longe de ser alcançada. Embora ele não tenha aceitado partir com ela, acabou percebendo que talvez ela estivesse certa quando chegou na Igreja e viu dois policiais procurando hereges.

Capítulo 4 — Destino Profético

Os policiais na igreja eram dois humanos, um bem alto e musculoso de pele clara, e outro, que parecia ser o líder, um pouco mais baixo e com pele marrom escura. Larzo já tinha ouvido falar que a Polícia Imperial só aceitava humanos. Uma vez que Bramon tinha escolhido um humano para manifestar sua essência no mundo, os humanos costumavam se considerar um tipo abençoado sobre os demais. A Madre dizia que isso era uma bobagem, todas as pessoas de todos os tipos eram abençoadas pelos deuses, mas como o Deus-imperador Nicolas Albigorn nunca dissera uma palavra sobre o assunto, humanos poderosos se aproveitaram para criar aquela farsa.

Larzo não gostava da Polícia Imperial. Ao contrário da Madre e dos sacerdotes que conhecera, eles não viam os hereges como pessoas que podiam se redimir. Para a polícia, hereges eram como uma doença no império e deveriam ser eliminados. Claro que a sentença e a punição só poderia ser efetuada por um bispo provincial, mas não eram raras as histórias de hereges que não tinham sobrevivido até seu julgamento — especialmente quando estes hereges não eram humanos. Por isso, quando o policial líder se aproximou dele dizendo que tinha achado um herege, o sangue de Larzo gelou. Ele acreditava já ter apagado as imagens obscenas do dispositivo de memória, mas e se tivesse deixado algum? Aquilo já era o suficiente para policiais o incriminarem.

— Larzo não é um herege, agente Aspen — a Madre falou, o que deteve os passos do policial — Ele está conosco desde a infância, é um bom garoto. Em breve vai iniciar seu treinamento sacerdotal com nosso diácono.

— Vocês sacerdotes deveriam tomar mais cuidado com quem aceitam no seio da Sacrossanta Igreja — agente Aspen respondeu — Maxon, deixa-a saber que fizemos nosso dever de casa.

Então o outro policial, o branco musculoso, pigarreou e começou a falar:

— Segundo os relatos das pessoas do vilarejo, o goblin Larzo pertencia a um grupo de bandidos da floresta que tentou roubar as ofertas desta igreja quatorze anos atrás. Foi o único a ser detido, mas a Madre Celéstia, sacerdotisa presbítera desta vila, retirou as queixas e o adotou. Desde então o elemento tem vivido aqui, na Vila Amora, e demonstra sempre muito interesse nos itens e conversas da nossa suspeita, Razeru.

Aquilo fez Larzo se sobressaltar outra vez. Razeru era suspeita de heresia? Aquilo fazia sentido considerando as coisas que ela vinha falando contra o Deus-imperador e sobre a profecia, mas… Ela estava ali na vila há apenas alguns minutos. Por que os policiais estavam na igreja?

— Até onde todos na Vila Amora sabem — Madre Celéstia continuou — Razeru é uma mercadora itinerante, conta histórias de lugares distantes, é claro que os jovens vão se interessar. Se ela tivesse falado heresias, eu saberia e eu mesma teria denunciado.

— E por acaso vossa santidade teria denunciado a venda ilegal deste artefato gnômico, Madre? — agente Aspen mostrou outra vez o dispositivo de memória — Segundo o novo decreto imperial, artefatos gnômicos encontrados em ruínas são considerados propriedade do império e devem ser entregues a agentes da Polícia Imperial. Pela posse ilegal deste artefato, já podemos levar o goblin Larzo, além de acusá-lo de colaboração com hereges. Madre Celéstia arregalou os olhos ao ouvir aquele absurdo. Larzo estava cada vez mais encolhido, sem saber o que fazer. Seria preso? Ele teria alguma chance de pelo menos ser julgado pelo Bispo de Calena? Aqueles policiais pareciam estar determinados a levá-lo. Foi impossível não se lembrar das palavras de Razeru. A profecia, o medo do Deus-imperador. Ela estaria certa? Aqueles policiais também acreditavam que ele era o goblin da profecia?

— Nesse caso, eu deveria ser a acusada — Madre Celéstia falou — Fui eu quem pedi que Larzo comprasse o artefato para mim. Achei que ele facilitaria nosso trabalho copiando textos sagrados.

— Isso é um absurdo! — Irmão Humberto, que estava calado até então, finalmente falou — Não soubemos de nenhum decreto imperial nesse sentido.

— A ignorância da lei não isenta os cidadãos do dever de cumpri-la — agente Aspen retrucou — E vossa santidade sabe disso, não é? Madre Celéstia assentiu.

— Deixaremos que o Bispo de Calena julgue meu caso — ela disse — Mas saiba que, quando eu for declarada inocente, sua delegada saberá da incompetência de vocês dois na execução do serviço.

Aspen fez uma cara feia, mas por fim, concordou. Fez sinal para que seu parceiro saísse e disse: — Tem dez minutos para se despedir e arrumar sua bagagem. Estaremos aguardando do lado de fora para levá-la sob custódia. Se em dez minutos vossa santidade não comparecer, temos o direito de mobilizar nossas forças conforme acharmos necessário.

— É claro, policiais — ela concordou e esperou os dois saírem. Larzo assistiu toda a cena inerte. Seus olhos já marejavam de lágrimas. Madre Celéstia seria presa? Aquilo estava certo? Se Razeru era a herege que a polícia procurava, podia dizer a eles que ela não estava longe dali. Isso livraria a madre, não? Mas… Pensar em Razeru sendo presa também lhe doía. Larzo não conseguia decidir o melhor a se fazer e aquilo o moía por dentro. A porta se abriu outra vez e Evangeline entrou, aflita. A expressão piorou quando viu Larzo chorar e Madre Celéstia dar orientações para Irmão Humberto juntar as coisas dela.

— O que está acontecendo, madre? — ela andou desajeitada até Madre Celéstia — Os policiais lá fora… Tão falando coisas estranhas. Isso é culpa do que eu aprontei? Eu não quis prejudicá-la e nem a Larzo.

Madre Celéstia abraçou Evangeline, que começou a chorar também. Não era só um abraço, Evangeline também usava suas asas para cobrir o corpo da madre, como se pudesse escondê-la do resto do mundo.

— A culpa não é de vocês, minha filha. Foi só um mal entendido.

Evangeline não queria soltar a madre, mas não tinha o que fazer também. Quando a soltou, saiu correndo e chorando para seu quarto. Sobrou apenas Madre Celéstia e Larzo no salão.

— Por quê? — Larzo perguntou, entre as lágrimas. Sua garganta não conseguia formular mais palavras e sua mente também não podia articulá-las naquele momento. Madre Celéstia foi até ele, se agachou e o abraçou.

— Vai ficar tudo bem, Larzo — ela disse — O Bispo de Calena é uma pessoa razoável e aqueles dois não ousariam tocar um dedo numa sacerdotisa da sacrossanta igreja, ainda mais uma presbítera.

Larzo não conseguia responder. Ele só chorava e soluçava enquanto a Madre o abraçava.

— Não dê ouvidos ao que as pessoas dizem de ruim sobre você. Você é especial — ela continuou — se for da sua vontade, continue seguindo as lições de Irmão Humberto. Mas há tempo para aprender, não fique preso a este lugar. Você pode viajar o mundo e realizar seus sonhos também. Não se esqueça disso, Larzo.

Ao som de passos, Madre Celéstia soltou Larzo. Irmão Humberto também chorava enquanto entregava uma mala a madre. Evangeline também tinha voltado para se despedir. Madre Celéstia olhou para os três, sua família ali na Vila Amora, e sorriu. Então todos se abraçaram e ficaram ali até que os policiais batessem a porta outra vez, dizendo que o tempo tinha acabado.

— Cuidem uns dos outros — Madre Celéstia falou, por fim — Quando menos esperarem, eu estarei de volta. Então saiu, acompanhando os agentes Aspen e Maxon até a carruagem policial. Na igreja, restou apenas o som de soluços e lágrimas caindo.

No dia seguinte, tentaram seguir com suas vidas normalmente. Evangeline e Larzo continuaram a limpar latrinas na Vila Amora e a ter aulas com Irmão Humberto. Evangeline contou a Larzo sobre como tinha sido o dia anterior com Tara e até deu a ele um dos pães de mel que tinha feito, mas nem aquilo serviu para melhorar o humor deles. Larzo não conseguia evitar o sentimento de culpa. Madre Celéstia tinha sido levada em custódia pela Polícia Imperial por conta dele. Mas poderia Larzo dedurar Razeru por causa daquilo?

— Não se sinta mal, Larzo — Irmão Humberto disse ao notá-lo cabisbaixo durante uma aula de encantamentos divinos — A Madre sabe o que está fazendo. Como presbítera da igreja da Vila Amora, ela ficará bem. Nenhum de nós ficaria tranquilo se tivessem te levado, aqueles policiais patifes…

Apesar disso, a profecia e tudo aquilo que Razeru havia dito não saía da sua cabeça. Principalmente depois de três dias, quando um arauto imperial apareceu na vila anunciando que em breve passaria uma ferrovia por ali, ajudando no abastecimento. Em troca, gradualmente substituiriam a forma de recebimento dos impostos. Naquela região da Província de Calena, deveriam pagar tributos em soja. As plantações variadas deveriam ser substituídas por grandes culturas de soja, assim como Razeru havia dito.

Por isso, Larzo decidiu que deveria terminar de ler aquele diário vermelho. Não podia esperar o retorno da Madre para ler de forma supervisionada — aliás, nem sabia se a Madre retornaria mesmo. Por isso convenceu Evangeline a levá-lo até a claraboia no meio da noite e invadiu o escritório, onde os livros heréticos estavam guardados. Uma vez que os guardas tinham levado seu dispositivo de memória, ler a fonte original era a única opção. Então lá, ligou a lamparina e começou a ler.

26 do Mês Terceiro do ano 526 do reinado do Deus-Imperador Nicolas Albigorn

A escavação no templo do Mar de Areia não trouxe muitas outras respostas acerca do margarete e sua conexão com vida eterna, mas contou-nos uma história interessante. É de conhecimento geral que existe pelo menos dois mundos além do nosso Mundo Mortal: o Mundo dos Deuses, de onde eles nos governam e para onde as boas almas são levadas, e o Mundo dos Demônios, uma prisão de tormento para as almas vis.

Mas, segundo os hieróglifos do templo, existem vários outros mundos desconhecidos para nós, mundos que não pertencem nem aos deuses e nem aos demônios. Parece que há muito tempo, vieram pessoas de um desses outros mundos. O mundo deles era representado por desenhos estranhos de torres quadradas e carruagens sem animais de tração, e o povo que veio de lá era mais estranho ainda, com artefatos que nem mesmo os antigos gnomos haviam forjado — o que era aquele canhão de mão?

Eu nunca havia ouvido falar dessas pessoas antes, mas imaginei que talvez fossem a chave para compreender o que era um margarete. Aposto minhas entranhas de que margarete é um desses artefatos de outro mundo. E se compreendi corretamente, um desses artefatos — que parece ser uma caixa, talvez? — foi enterrado no meio dos cânions na Rachadura do Mundo. Ainda tive mais descobertas, mas é importante registrar enquanto estou em viagem que eu acredito que é lá que esteja o margarete, seja ele o que for. Acho que a vida eterna do Deus-imperador Nicolas Albigorn tem a ver com o margarete, pois a pessoa que enterrou a caixa nos desenhos e hieróglifos se parece demais com ele. Se eu estiver certa… Podemos mesmo acreditar que a essência de Bramon se manifesta nele?

Larzo estava para virar a página do diário quando a porta do escritório se abriu de súbito. Irmão Humberto estava lá, com olheiras e uma expressão nada feliz.

— Depois daquela travessura, a Madre tinha colocado um encantamento na clarabóia — ele explicou, indo até Larzo e tomando o diário das mãos dele — Não faça essas coisas mais, rapaz. Já estamos sofrendo demais.

Larzo ficou de cabeça baixa. Não tinha o que responder ao Irmão Humberto. A Polícia Imperial tinha conseguido levar Madre Celéstia justamente por causa das concessões que ela fazia com as leis e os dogmas sagrados, continuar com aquilo seria… Perigoso. Mesmo assim, não pôde evitar o choque quando viu o que Irmão Humberto estava fazendo.

— Você vai queimar os livros proibidos? — perguntou, sobressaltado. Irmão Humberto fazia uma limpa no escritório, jogando tudo num saco que Larzo conhecia bem: muitos anos atrás, já tinha presenciado uma Fogueira Purificadora e todos os ritos envolvidos.

— Precisamos fazer isso agora mesmo — Irmão Humberto continuou.

— Madre Celéstia me disse que aqui nós não queimamos conhecimento — Larzo se levantou, argumentando — Nem mesmo o herético.

— E onde isso nos trouxe? — Irmão Humberto ficou vermelho com a raiva — Isso é para nosso próprio bem, Larzo. E um dia, você vai entender!

Larzo saiu correndo para o seu quarto. Chorou outra vez quando viu a fogueira crepitando no meio da noite enquanto Irmão Humberto fazia preces de arrependimento para todos os deuses do panteão. Aquilo era o certo. Mas não parecia o certo.

Evangeline estava terminando de copiar um relato sobre a construção das Minas Divinas quando Irmão Humberto anunciou que ia até o burgo. Sozinho com sua melhor amiga, Larzo resolveu contar tudo o que tinha acontecido desde quando lera o diário vermelho a primeira vez: falou sobre o templo goblin do deserto, sobre margarete, sobre os outros mundos, e também sobre o que Razeru havia dito. Sobre a profecia e sobre o projeto de especialização das províncias.

— E você tem lidado com isso sozinho desde aquele dia? — Evangeline perguntou quando Larzo terminou de contar sua história.

Ele assentiu. Não tinha muito o que fazer. Estava lindando com heresias, aquilo era perigoso, não queria colocar ninguém em risco.

— Se conheço bem sua cabeça de vento — Evangeline continuou — Você deve estar se culpando por ter deixado os policiais levarem a Madre quando sabia do paradeiro de Razeru.

— Bom, de fato ela é uma herege…

— Tão herege quanto nós dois, Larzo — Evangeline bufou — E é claro que você não deduraria Razeru. Ela é sua amiga, amigos não abandonam amigos. E a Madre Celéstia sabe o que está fazendo. Ela é uma humana e é uma presbítera, tem muito mais chances de sair ilesa do que qualquer um de nós.

Larzo assentiu. Mesmo assim, não sabia o que fazer. Aquilo tudo era demais para ele. — Você acha que esse papo de profecia é real? Evangeline parou um tempo para pensar, e depois respondeu:

— Não sei, Larzo, mas Razeru acertou em tudo o que disse, não é?

— É…

— Então pronto. Está decidido.

— Decidido o quê? — Larzo tomou um susto. Do que ela estava falando?

— Você precisa ir com Razeru. Irmão Humberto é muito bundão, ele não deixaria você treinar ou fazer nada suspeito. E aqueles policiais vão voltar por você, eu tenho certeza. Se Razeru disse que pode te treinar para se defender, ela é sua melhor opção, estando essa profecia correta ou não.

— Mas e como vamos saber onde está Razeru? Talvez a Polícia Imperial já a tenha localizado. Evangeline então estalou a língua.

— Para alguém tão inteligente, às vezes você é lento demais para pensar. Larzo, a Polícia Imperial só emprega humanos e Razeru deve ser boa em evitá-los. Mas nós temos uma vantagem. Eu posso voar, lembra? Então vamos arrumar nossas coisas. Eu vou te ajudar a encontrar Razeru.

Larzo ainda estava hesitante. Como Evangeline podia ter decidido tão rápido? Ele nem sabia ainda se era aqulio que devia fazer.

— Sem dar corda para sua cabeça de vento, Larzo! — ela ralhou — Junte suas coisas mais importantes numa bolsa. Temos que partir antes que Irmão Humberto chegue.

Com a insistência de Evangeline, Larzo foi arrumar suas coisas. Estava prestes a levantar voo com ela quando pensou de novo no que Razeru disse. Fosse um destino profético ou não, parecia que ele não poderia escapar daquilo.

Making-off

Esta é uma parte crucial em que o Larzo deixa a Vila Amora, finalizando o pedaço da recusa do herói. A partir de agora, Larzo está na aventura e, quando se der conta disso, já terá ultrapassado o ponto de não retorno.

Mas também quis trazer alguns pontos que considero importantes. A situação é uma opressão sistêmica, mas o pessoal da Vila Amora não fica vendo e batendo de frente com o Deus-imperador o tempo todo. Então até que é uma paz relativa. Enquanto eles fizerem sua parte, são deixados ali para viverem suas vidas. Isso traz a ilusão de que Larzo tinha uma escolha entre enfrentar Nicolas Albigorn ou continuar sua vida como tinha sido.

É uma ilusão porque não tem como sua vida continuar como estava sendo até então, isso não é do interesse do Nicolas Albigorn. Escolher ficar na Vila Amora seria ter uma postura como a do Irmão Humberto, abrir mão da luta e se render cada vez mais, mesmo se isso te custar seus princípios e outras coisas importantes.

Daí foi só acerto de outros detalhes, porque esse capítulo é uma transição. Os policiais se chamam Aspen e Maxon porque, enquanto eu escrevia, me veio “A Seleção” da Kiera Cass na cabeça (e não, não sei o porquê); pediram soja da Vila Amora porque esse sistema de hiper-especialização das regiões parece muito o nosso mundo globalizado, e o Brasil tá refém do agronegócio exportador de soja. Quis fazer essa referência.

E enfim, o melhor jeito de Larzo encontrar Razeru é voando com Evangeline. É bom que eles tiram proveito da xenofobia por parte das classes dominantes desse mundo.

Mas é isso, até o próximo capítulo!

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