A Lenda de Larzo — Capítulo 2

Capítulo 2 da História de Fantasia Genérica e um making-off para você se sentir assistindo o reality show de um escritor escrevendo uma história.

E continuamos com nossa História de Fantasia Genérica, projeto iniciado nesta newsletter. Agora chegamos ao momento do Chamado para a Aventura.

Você pode ler essa história também no Scriv, mas só aqui tem o making off.

Mas bem, caso você tenha se esquecido, vamos com o Anteriormente…

Na Vila Amora, no interior da Província de Calena do Império Albigorn, um pequeno goblin chamado Larzo tinha se infiltrado no escritório da Madre Celéstia para ler pegar um caderno de desenhos heréticos para sua amiga Evangeline. Mas, em vez disso, acabou achando um diário (também herético) falando sobre alguma descoberta envolvendo um artefato chamado “margarete” e “vida eterna”. Madre Celéstia acabou pegando-o no flagra, mas como Larzo e Evangeline são como filhos para ela, decidiu poupá-los do castigo e só administrar essas curiosidades juvenis com cautela.

Capítulo 2 — A Mercadora Abis

A Madre Celéstia realmente não aplicou nenhum castigo em Larzo ou Evangeline, mas o mesmo não podia ser dito do Irmão Humberto. Mesmo sem saber exatamente o que havia acontecido, ele achou justo decretar uma semana de trabalho nas latrinas para os dois, já que ouviu dizer que eles deram trabalho para a Madre no meio da noite.

— Eu sei que esse é o pior trabalho — Evangeline disse enquanto esperava Larzo encher mais baldes de fezes para ela levar a composteira — Mas está valendo a pena. Aqueles desenhos que você conseguiu são incríveis!

Larzo só assentiu. O trabalho de enfiar a pá no montinho de fezes retirado da latrina e colocá-lo nos baldes já estava no automático. Desde que lera aquele diário vermelho proibido dois dias atrás, ele só conseguia pensar nele. Uma escrita goblin num templo do deserto. Quem seriam aqueles goblins? O que é um margarete?

— Larzo? — Evangeline chamou outra vez, notando a distração do amigo — Larzo? O mundo dos vivos te chama, Larzo. Venha para a nossa luz.

— O que foi, Evangeline? — ele balançou a cabeça, tentando se focar de novo — Aconteceu alguma coisa?

— Não, você só tá sendo um cabeça de vento de novo.

— Ah, foi mal. Não vai demorar pra gente acabar aqui, daí podemos tomar um banho e relaxar o resto do dia.

— Ok… Mas e aí?

— E aí o quê?

— O que essa sua cabecinha hiperativa tá pensando dessa vez?

— Ah — Larzo engoliu em seco. Não queria contar a Evangeline sobre o diário vermelho, mas sabia que ela não o deixaria em paz até que contasse algo. Evangeline sempre fora assim — Eu estava pensando nos goblins de fora da Província de Calena. Como eles são?

— Hum, Larzo pensando no mundo fora de Calena. Isso é interessante. Já acabou aí?

Larzo percebeu que tinha colocado as últimas fezes da latrina dentro dos baldes. Agora Evangeline só os pegaria e levaria até a composteira e o trabalho do dia estaria pronto.

— Pode pegar.

— Então vamos.

Evangeline encaixou os oito baldes num cabo longo de madeira e, encaixando-o em seus ombros, começou a andar. Larzo pegou sua pá e foi acompanhá-la.

— Mesmo se eu não tivesse esses lampejos de memória num navio pirata, é meio óbvio que eu não sou daqui — ela começou — Sou altona, pele azul escura e tal. Mas você é bem parecido com os goblins daqui. Baixinho, verde, e um estômago impressionante para uma criatura tão pequena.

— Eu sei, mas é estranho, não acha? Sei que não estamos tão longe assim da capital do império, mas Calena não é nem de longe a maior província. Em todos esses anos, ninguém reportou a perda de uma criança. Se algum casal tivesse um filho perdido, já teríamos ouvido a notícia a este ponto, não teríamos?

— Eu sinto muito, Larzo — Evangeline respondeu, em tom baixo — De verdade.

E Larzo percebeu que já tinha lágrimas descendo pelos olhos. Então era aquilo de novo? Era esse o motivo do diário vermelho ter mexido com ele? Aquela era uma dor antiga. Em seus anos com os bandidos, ninguém nunca falara dos seus pais. Tudo o que Larzo se lembrava era de ouvir ter sido achado no meio da floresta, sozinho e chorando. O mais provável é que seus pais teriam sido mortos. Ouviu falar que, quarenta anos atrás, goblins em Calena tinham iniciado um culto herético e as forças imperiais decretaram a morte de todos eles. Mas o Grande Expurgo de Calena fora há quarenta anos, de lá pra cá os goblins estavam reconstruindo suas vidas. Larzo não queria acreditar que tinham morrido.

Seria melhor se acreditasse que vinha de um lugar distante. E se ele fosse um goblin do deserto? Talvez os goblins não fossem tão diferentes entre si como era o caso dos humanos e erotes. A Madre disse que existem várias nações goblins no mundo, cada uma com uma cultura diferente. Talvez ele fosse de uma dessas culturas diferentes… Mas só de dar concretude a esses pensamentos, Larzo percebia o quão ridículos eles pareciam.

Não existia outra família para ele voltar.

— Vamos — Evangeline pegou Larzo no colo assim que terminou de depositar as fezes na composteira — Você precisa de um banho.

Então levantou voo e saiu da Vila Amora. As lágrimas e o vento do voo rápido de Evangeline atrapalhavam Larzo a enxergar por onde estavam indo, mas ele já imaginava. Logo pousaram numa clareira da mata onde fluía uma cachoeirinha, um lugar onde eles sempre iam brincar quando crianças. Ela tinha razão, era melhor se concentrar em se lavar naquele momento.

Larzo entrou na água junto com Evangeline. O córrego levava a sujeira das suas mãos e roupas e disfarçava as lágrimas tímidas que caíam dos seus olhos. Então sentiu os braços de Evangeline ao redor do seu corpo e a voz dela dizendo:

— Tá tudo bem, você pode por tudo pra fora.

E assim Larzo irrompeu em uma crise de choro e soluços. Mal conseguia dizer o que se passava em sua cabeça, mas Evangeline continuava ali, o segurando silenciosamente, sempre o lembrando de que ela ainda estava ali.

— Achei que já tinha superado isso — ele falou, finalmente, quando os soluços diminuíram a intensidade — Já tenho 19 anos, droga. Sou um adulto, não sou?

— Acho que a gente nunca vai superar — Evangeline respondeu — Não fomos essas crianças que cresceram sob o nome de alguma família ou clã.

— É… — Larzo assentiu, tentando enxugar as lágrimas e falhando porque seus braços ainda estavam molhados pela água do córrego.

Evangeline balançou as asas para secar algumas penas e as usou para limpar as lágrimas para Larzo, e então disse.

— Apesar disso, sempre seremos uma família, não é? Você, eu, a Madre Celéstia, e até o rabugento Irmão Humberto. Sempre vamos estar aqui, cuidando um do outro.

E aquilo reconfortou Larzo. Era melhor tirar o diário vermelho da cabeça, deixar o passado passar. Ele tinha uma vida boa, estava com boas pessoas. Aquilo precisava ser o suficiente.

Assim que voltaram para a Vila Amora, avistaram Theo correndo na direção deles. Theo era um goblin, assim como Larzo, mas um pouco mais novo. Ele tinha 16 anos e usava um óleo especial que conseguia fazer seus cabelos ruivos ficarem espetados. Era filho único de um casal de apotecários da vila e, embora estivesse treinando para assumir o ofício da família, estava sempre na igreja atrás de Evangeline e Larzo. As crianças da vila nunca deram muita atenção para eles, mas Theo era diferente. Ele brincava com qualquer pessoa que sorrisse para ele, sempre fora assim. Se não tivesse sua própria família, Larzo com certeza adicionaria Theo na lista que Evangeline tinha feito minutos atrás.

— Vocês tarados ficaram responsáveis por limpar as latrinas da vila de novo, não foi?

— Primeiramente, fazer serviços voluntários para as pessoas da Vila Amora é uma grande honra para um acólito da igreja — Larzo respondeu.

— Nem tente fingir que você também não odeia esse trabalho, Larzo — Evangeline bufou — E essa peste aí não tem moral nenhuma para falar da gente. Aposto que veio me pedir pra ver os desenhos, não é?

Larzo passou a mão no próprio rosto. Aqueles dois eram impossíveis.

— Pelo menos ele não está tentando te espiar nua outra vez, Evangeline.

— Ele não seria doido de tentar algo assim depois daquela surra.

— Mas você tem desenhos novos, não tem, Evangeline? — Theo perguntou, exalando expectativa por seus poros.

— Evangeline não vai ficar alimentando seus desejos pecaminosos, Theo — Larzo interveio.

Theo deu de ombros e então continuou:

— Tá bom, Irmão Larzo — ele fez uma reverência irônica — Mas vim aqui para pedir outra coisa, na verdade. A mercadora abis chegou na Vila e, como você tem um bom relacionamento com ela, pensei em te pedir ajuda para conseguir algum desconto em alguns ingredientes para porções.

— Mas você é muito folgado, moleque! — Evangeline interveio — A gente trabalhou pra caramba. O Larzo aqui precisa de um descanso.

— Tá tudo bem, Evangeline — Larzo respondeu — Eu te encontro na igreja depois.

— Tem certeza? — ela perguntou, com o olhar preocupado.

— Tenho. Tá tudo bem agora.

Evangeline soltou um suspiro e então sorriu.

— Tudo bem. Até depois então.

vComo sempre fazia quando passava na Vila Amora, Razeru estava no bazar. Era sempre a parte mais movimentada da vila, com muitas barraquinhas, vai-e-vêm de pessoas, e a habitual gritaria dos vendedores para chamar compradores. Razeru era a única que não precisava gritar para atrair todo mundo.

Primeiramente, ela era uma abis, e abisses não eram tão comuns em Calena. Sua pele era vermelha e escamosa como a de um dragão de fogo, tinha dois chifres curvados como os de um bode, e um rabo articulado terminando numa seta pontiaguda. Abisses não raras vezes deixavam as pessoas com medo, uma vez que seus dentes caninos eram tão grandes quanto as de feras carnívoras, mas Larzo sempre pensou que Razeru tinha um sorriso muito simpático.

O outro motivo para ela atrair tantos compradores eram suas mercadorias exóticas. Era comum que mercadores itinerantes parassem nas cidades e burgos, mas Razeru era a única que trazia produtos de terras distantes até lugarejos pequenos como a Vila Amora. Aquilo com certeza fazia muito sucesso numa cidadezinha pacata.

Então Theo e Larzo demoraram um bom tempo na fila até conseguirem alcançar o balcão da barraquinha de Razeru e, quando isso aconteceu, o estoque dela estava praticamente no fim.

— Olha se não é o Larzo, meu goblin favorito por essas bandas — Razeru abriu seu sorriso com dentes pontiagudos, o que fez Theo recuar um passo para trás e fez Larzo rir — E como vão as coisas? Aquele dispositivo compilador funcionou direitinho?

— Funcionou sim, do jeitinho que você falou — Larzo confirmou.

— Ele e Evangeline copiaram um monte de desenhos proibidos com ele — Theo dedurou.

Larzo deu um tapinha na cabeça de Theo para ele ficar quieto e Razeru riu ainda mais.

— Olha, Larzo, eu te vendi aquilo porque achei que facilitaria seu trabalho fazendo cópias dos livros sagrados. Se você quisesse ver uns peitinhos por aí, tem um monte de garotas solteiras no burgo procurando casamento. Se quiser, eu tenho um perfume que vai fazer você ser o goblin mais cobiçado de toda a Província de Calena.

— Não precisa não. Na verdade, eu vim comprar umas especiarias aqui pro Theo. Você tem unha-de-gato e jatobá?

— Uhum.

Prontamente, o rabo de Razeru se levantou até o balcão depositando dois saquinhos com as folhas já picadas enquanto ela pegava com a mão aqueles frutos fedorentos.

— Já vendi a maior parte, mas tenho isso aqui ainda — ela explicou — Tudo fica por uns cinquenta pesos.

— Já que sou um antigo cliente, você faria por trinta e cinco?

Razeru riu e depois estalou a língua.

— Vocês que vivem entocados aqui nessas vilas não sabem muito sobre meu trabalho, né? Ser uma mercadora não é nada fácil. Tenho que dar manutenção nas carroças, comprar minha própria comida nas paradas, pagar as estalagens… Se eu sair vendendo tudo tão barato, não tem como continuar buscando mercadorias distantes. E isso sem contar os perigos que eu enfrento.

— Nem vem com essa, Razeru — Larzo abriu seu sorriso também. Se desse muito espaço pra ousadia, ela começaria a contar suas aventuras exageradas enfrentando monstros inimagináveis só para conseguir as melhores mercadorias de cada província do império — A gente sabe que o Deus-imperador mantem as estradas seguras.

— Mas ele não faz isso de graça, garoto. Eu ainda tenho que pagar meus impostos.

— Então o que acha de quarenta pesos? Achei que fôssemos amigos, Razeru. Aqui a gente também precisa pagar impostos.

Razeru começou a coçar o próprio queixo com a ponta do seu rabo por um tempo, o que era bom sinal. Ela sempre fazia isso quando considerava alguma proposta. Depois de alguns segundos, ela abriu o sorriso e disse:

— Vamos fazer o seguinte. Posso vender a mercadoria pro Theo por esses seus quarenta pesos, mas não vou ficar no prejuízo. Eu já tô terminando aqui e vou precisar passar ali no celeiro. O velho Douglas me pagou um frete bem generoso pra levar umas sacas de cebolas até o burgo, mas tô cansada. Se a gente fechar negócio aqui, você carrega minha carroça? — ela estendeu a mão.

Aquilo era esperado de Razeru, era impossível passá-la para trás. Mas não seria de todo o ruim. Larzo sempre dava um jeito de passar mais tempo com a mercadora abis, desde que ela incluíra a Vila Amora em sua rota comercial dez anos atrás. As aventuras podiam ser só histórias exageradas, mas eram histórias divertidas que Larzo adorava ouvir.

— Negócio fechado — Larzo apertou a mão estendida de Razeru.

Sem nem tentar disfarçar sua armação, Theo pulou em comemoração.

— Sabia que podia contar com você, Larzo! Você é o cara!

— Tá, tá, tá, agora passa aí o dinheiro pra Razeru e se manca daqui — Larzo sorriu — E vê se fica longe dos desenhos da Evangeline. Aquilo lá não tá certo não.

Theo pegou sua mercadoria e foi saltitando para casa. Larzo imaginava que ele correria para Evangeline assim que deixasse tudo em ordem na apotecaria. Ele não tinha jeito.

— Senta aí, Larzo — Razeru puxou uma cadeira tamanho goblin e ofereceu a ele — Ainda tenho uns produtos pra vender aqui e adoraria ouvir como foi que você copiou os tais desenhos proibidos.

Larzo contou sobre o plano para invadir o escritório da Madre e sobre como ela permitiu que Evangeline ainda tivesse acesso aos desenhos. Elogiou muito o dispositivo que Razeru tinha vendido da outra vez, mas deixou o diário vermelho de fora da narrativa. Aquilo ainda o perturbava um pouco e, depois de conversar com Evangeline de manhã, achou melhor não ficar pensando demais naquilo.

Por isso ficou surpreso quando foi ajudar Razeru com as cebolas e ela não contou mais uma de suas histórias aventurescas. Em vez disso, ela perguntou:

— Você ainda tem fé no Deus-imperador Nicolas Albigorn?

Aquela era uma pergunta sempre muito complicada. Como membro da igreja, era óbvio que Larzo acreditava em todo o panteão. Sendo assim, precisava acreditar também em Bramon, o deus dos deuses, líder de todo o panteão. Não era seu papel questionar as ações de Bramon ao enviar sua essência ao mundo na forma do Deus-imperador Nicolas Albigorn. Mas também era impossível negar que a vida sob o Império Albigorn não era boa para todas as pessoas. As pessoas na Vila Amora, principalmente goblins, tinham receio de expor seus pensamentos. Mas se tivesse ouvidos atentos, era possível ouvir ainda as vozes de insatisfação: impostos cada vez maiores por causa das incansáveis guerras, humanos se achando superiores aos outros só porque o Deus-imperador assumiu a forma de um humano, os rumores de escravidão nas partes mais longínquas do império… Ninguém estava realmente satisfeito. Mas ser contra o Deus-imperador era heresia, e heresia era punida com a morte.

— Sabe que estou estudando para me tornar presbítero aqui na vila, não é? — Larzo respondeu enquanto carregava uma saca de cebolas para a carroça — Um dia devo assumir o posto que a Madre Celéstia ocupa.

— A Madre ainda é jovem — disse Razeru — Deve ter minha idade, uns quarenta anos. Não acha que deveria ver mais o mundo antes de decidir se este é o seu caminho? As coisas não estão boas sob o governo do Deus-imperador, Larzo.

— Achei que estivessem boas para vocês, mercadores itinerantes. É o que os camponeses falam, sabe? Com os impostos e guardas em postos avançados nas estradas, vocês estão tendo mais lucros agora do que já tiveram nos últimos séculos.

Razeru balançou a cabeça.

— É verdade que os mercadores estão se beneficiando em parte. As guildas de mercadores estão tendo lucros recorde, mas isso às custas das regiões mais pobres — ela falou, pegando as duas sacas de cebolas restantes e deixando Larzo livre do trabalho braçal — Meus olhos não são bons apenas para enxergar na escuridão da noite. Sou abençoada com o poder de enxergar a escuridão do mundo, e ela está se avolumando, Larzo.

— Onde você está querendo chegar, Razeru?

Ela então se sentou na carroça, chamando Larzo para se sentar ao lado dela.

— Existe uma profecia muito antiga que ouvi da minha avó quando era pequena, e minha avó disse ter ouvido da avó dela. Ela dizia que quando o mundo se visse na palma do gigante, prestes a ser esmagado, um ser pequeno e inteligente nos traria de volta a liberdade.

Razeru o olhava intensamente com seus olhos amarelados. Não podia ser. Larzo não queria acreditar que ela estava sugerindo aquilo.

— Gnomos são tão pequenos quanto goblins — respondeu — Essa profecia talvez esteja falando deles. Aquele dispositivo que você me vendeu foi encontrado numa ruína gnômica antiga, não foi? Se você acha que essa profecia está se cumprindo, deveria procurar…

— O Deus-imperador não teme os gnomos a ponto de ter matado centenas deles, Larzo — ela falou com mais firmeza — O Grande Expurgo em Calena teve como alvo os goblins.

— Não, eles eram hereges… Sempre me disseram…

— Você sabe, aí no fundo, que isso não faz sentido, né? — Razeru abriu um meio sorriso — Te conheço desde que você era um menino assustado, com medo de se perder nessa vila. Você sabe, Larzo, que a história que te contaram não está completa.

Ela tinha razão. Diversas vezes havia perguntado à Madre sobre as heresias dos goblins do passado, aquelas que faziam as pessoas de hoje tentarem ser tão diligentes. A Madre sempre respondeu que não sabia ao certo, que aos olhos dela, as pessoas sempre foram pessoas. Mas deveriam tentar confiar em Bramon. Mesmo o Deus-imperador Nicolas Albigorn sendo insondáveis para mentes mortais, deveria confiar que Bramon tinha um propósito naquilo tudo. Mesmo assim, mesmo assim…

— Nunca acreditei no Deus-imperador Nicolas Albigorn — admitiu — Mas o que podemos fazer, Razeru? Ele é um deus. É imortal e invencível. O que poderíamos fazer além de rezar para Bramon ter piedade de nós?

— Deuses não deveriam ter medo — Razeru falou — Mas ouvi dizer que ele tem pesadelos constantemente, sempre acordando e falando sobre algo. Margarete.

Os olhos de Larzo se arregalaram. Margarete. A palavra que estava no diário vermelho.

— Eu sei que isso tudo é informação demais — Razeru se antecipou — Mas eu te observo desde criança. Aposto minha vida que você é a criança da profecia. Eu sei, eu sei que parece loucura, mas… Venha comigo. Eu vou te mostrar o mundo fora da vila, as coisas ficarão mais claras. E vou te ensinar tudo o que eu sei, como se defender.

— Não estou entendendo, Razeru — Larzo falou, já se levantando da carroça — Você mesma disse. É informação demais.

— Eu sei… — ela suspirou e abaixou a cabeça — Vou para o burgo ao anoitecer e passarei aqui outra vez no por do sol de amanhã. Pense na minha proposta, Larzo. As respostas para tudo o que você busca estão lá fora e eu posso te ajudar.

Larzo estava confuso quando chegou de volta à igreja. Sua cabeça doía e seus pés pareciam andar sozinhos. Quando se deu por si, estava batendo à porta do quarto de Evangeline. Levou um tempo até ela abrir.

— O que aconteceu, Larzo? Você está bem?

Ela estava enrolada numa toalha e, ao fundo, Larzo conseguia ver os papéis de desenhos espalhados pela cama. Então ela estava ocupada com aquilo de novo.

— Não é nada — ele disse, recuando — Desculpa.

— É alguma coisa sim — ela rebateu — Fica aí que eu já venho.

Então ela fechou a porta e Larzo não obedeceu, seguindo pelo corredor e subindo as escadas. A Madre. Seria uma boa ideia falar com a Madre, não seria? Ela sempre o ajudara quando estava com problemas. Logo na subida, encontrou com Irmão Humberto — um humano de pele marrom e que usava óculos.

— Fez um bom trabalho hoje, Larzo, mas espero que você não continue indo na onda daquela erote depravada outra vez.

Larzo assentiu e continuou andando. O quarto da Madre estava aberto e ela estava escrevendo alguma coisa em sua mesa. Ele se deteve. Não queria atrapalhar. Mas a Madre o viu e parou o que estava fazendo, abrindo um sorriso na sua direção.

— Larzo? Aconteceu alguma coisa?

Então Larzo acabou contando. Não falou sobre a pergunta de Razeru sobre o Deus-imperador e nem sobre a profecia — temia que aquelas coisas incriminassem Razeru como herege. Mas falou da proposta dela de levá-lo como aprendiz de mercador.

— Mas eu estou prestes a iniciar meu treinamento como presbítero. Não sei se isso é certo.

— Eu devo concordar com Razeru em uma coisa — Madre falou — Ainda tenho muitos anos pela frente para cuidar dessa igreja. Não é como se você tivesse de escolher entre viajar o mundo com Razeru por alguns anos e assumir o presbitério. Você sempre poderá voltar.

— Mas não sei se posso abandonar Evangeline… — Larzo respondeu.

Nesse momento ouviu um suspiro pesado atrás de si. Evangeline estava ali — dessa vez devidamente vestida — ouvindo a conversa. Larzo deveria estar mesmo absorto com o fluxo de pensamentos acerca daquela decisão para não tê-la notado ali antes.

— Acho que você deve ir, Larzo — Evangeline falou, por fim — Ainda somos amigos, somos família, e estaremos aqui quando voltar.

— Concordo com Evangeline — Madre Celéstia assentiu — Você sempre quis ver o mundo.

Aquilo era inesperado para Larzo. Achava que as duas lhe dariam mais motivos para ficar, não incentivo para ir. Mesmo assim, não podia dizer que estava decidido.

— É que não tenho certeza de que ainda quero isso…

— Nesse caso, você tem um dia para pensar — Evangeline pousou a mão sobre o ombro de Larzo e se agachou para ficar na altura dele — Só me prometa que vai priorizar sua própria felicidade, porque isso é tudo o que eu quero para você.

Larzo assentiu e deu um abraço em Evangeline. Teria um dia para pensar no que fazer.

Making-off

A ideia desse capítulo foi dar mais uma desenvolvida nos personagens. A parte do Larzo ser um órfão era só uma questão clichê, mas acho que não consigo desenvolver isso da mesma forma clichê a que estou acostumado. Não vai ter uma grande revelação de “quem são meus pais biológicos?” (talvez eu me contradiga no futuro), o fato principal é um sentimento de abandono. O ponto é que não pretendo resolver esse sentimento de abandono com algo do tipo “meu pai era o Quarto Hokage”, “meu pai morreu lutando contra o Lorde Sombrio”, ou algo do tipo. Larzo foi adotado pela Madre Celéstia e isso preenche o vazio. Mesmo assim… Não tem como ser a mesma experiência. Em seu meio social, Larzo e Evangeline sempre vão se sentir deslocados, diferentes demais. Isso dói.

Mas dá para perceber que o laço entre eles é forte, né? A ideia é essa mesmo.

E aproveitei para acrescentar mais um personagem do Elenco do Larzo: o Theo. Quis que ele parecesse mais moleque traquina e acho que consegui. Também inseri em cena o Irmão Humberto, mas ele tem um papel mais figurante mesmo.

Mas bem… A estrutura dessa história é Jornada do Herói, 3 Atos e tal. Então já é hora de apresentar o conflito, por isso quis inserir logo o Chamado para a Aventura. E aqui aparece outra personagem (que terá seu próprio elenco depois): a Razeru. Se você se lembrar da newsletter em que apresentei a ideia, essa aqui será a mestra do Larzo nas ladinagens.

Como me pareceu muito aleatório ela aparecer na cidade, bater o olho e pensar: “ESSE MOLEQUE É O MOLEQUE DA PROFECIA, IHU”, resolvi introduzi-la como se fizesse parte do Elenco do Larzo. Uma pessoa que não é da Vila Amora, mas é conhecida de todo mundo ali. Tipo o que o Gandalf representa para o Frodo.

E como Evangeline e Madre Celéstia são legais com o Larzo, claro que elas apoiam a ida dele. É só que o Larzo é muito indeciso e hesitante mesmo nesse início, né? Ele ainda não é um herói. Daí resolvi fechar o capítulo aí mesmo.

Bom… Semana que vem tem mais.

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