#23 — Literatura não é didática, mas pode ser ideológica

Por falta de tempo de escrever, estou repostando um texto que foi originalmente publicado na VAL e que continua a discussão sobre ideologia colonial na literatura de fantasia iniciada na semana passada. Então conto atualizações dos Lâminas do Caos.

É isso, gente, significa que estamos falando de

Mancha de tinta verde sobre um fundo preto e uma inscrição em branco "Arte"

Literatura não é didática, mas pode ser ideológica

Publicado originalmente em 31 de Janeiro de 2025 na Verifique Antes de Ler

Há algum tempo, ocorreu uma polêmica bem engraçada nas bookredes: livros com cenas de sexo sem camisinha fazem apologia a relações sexuais inseguras? Embora tenha sido uma discussão boba, os muitos argumentos a favor e contra revelam uma contradição interna muito interessante da literatura:

As histórias de ficção não são reais, seus acontecimentos não têm consequências diretas na realidade e nem necessariamente se baseiam nela. Ao mesmo tempo, nós escrevemos ficção a partir da realidade e a lemos dentro da realidade.

A polêmica das camisinhas é simples de se resolver. Ninguém vai contrair uma IST por falta de camisinha em sexo ficcional e, por outro lado, a maioria das pessoas não parece entender a ausência da camisinha nos livros como uma prescrição de como suas relações sexuais reais devem acontecer. Camisinha é um detalhe que a maioria das pessoas que fazem sexo seguro ignora na ficção.

Há, no entanto, outras questões mais complicadas em que a contradição ficção-realidade nos pega: e se na ficção existirem seres inerentemente maus? Civilizações de orcs, goblins ou trolls que são tratados não como civilizações, mas como bárbaros, vilões que devem se sujeitar aos heróis ou serem exterminados?

Eu já falei sobre isso no meu texto “A problemática colonial dos inimigos bestiais (ou sem rosto) na fantasia”, mas também quis trazer esse debate aqui para a VAL.

Na vida real, vários povos foram tratados assim, desde os bárbaros da era greco-romana até povos indígenas, africanos, e qualquer povo que não seja branco europeu. Colonialismo e racismo funcionam assim. Mas não seria forçado defender orcs e goblins como se fossem os povos oprimidos da vida real? Afinal, não existem orcs e goblins, qual seria o problema de dizer que eles são realmente maus por natureza?

Agora a questão ficou mais complicada, não é?

Embora a contradição interna à ficção seja o motivo da confusão, ela própria é a chave para resolver tudo isso e compreender todo o movimento da ficção.

Primeiramente, devemos saber que a pessoa que cria a ficção existe na realidade. A realidade é, enfim, a matéria- prima da ficção. As categorias da vida real, as ideologias da vida real, tudo isso vai influenciar diretamente a ficção.

Em seu livro “Colonialismo e Luta Anticolonial”, Domenico Losurdo informa vários exemplos de conquistadores e colonizadores que justificam suas ações violentas, injustas e genocidas pintando o outro como “mau” e “não civilizado”, assim a destruição do outro é um jeito de salvar o mundo. Segundo ele, a “ideologia ‘humanitária’ e ‘ética’ atravessará profundamente a história da tradição colonial e imperial, a história da dominação enquanto tal” (p. 21).

Uma vez que a ficção adota essa premissa, ela se compromete com essa mesma posição ideológica pró-colonialismo. Mas, claro, a ficção ainda é ficcional. Um genocídio orc comemorado por humanos ainda é um evento que nunca aconteceu. E é claro que, também, essa ficção não vai ensinar as pessoas a comemorar genocídios. A literatura não tem o compromisso de ser didática.

Porém, qualquer pessoa que lê a história de ficção continua lendo no mundo real. Suas ideias e reações à leitura são reais e têm implicações na vida real. Isso significa que a ideologia dominante da cultura leitora pode ser tanto endossada quanto criticada pela ideologia informada na ficção.

Um caso recente e interessante: os ucranianos começaram a chamar russos de orcs, em referência a “Senhor dos Anéis”. Vale ressaltar que isso não se deve apenas à atual guerra entre Ucrânia e Rússia, mas também a um sentimento antirrusso e pró-europeu que vem se fortalecendo na Ucrânia desde o Euromaidan.

A obra de Tolkien não ensinou aos ucranianos que os russos são um povo maligno. Mas a ideologia colonial europeia que encontrou lugar na ideia de Tolkien de retratar orcs como inerentemente malignos serviu de combustível para uma ideologia que considera a etnia russa como inferior.

Voltando ao caso do sexo sem camisinha retratado corriqueiramente em livros de romance: é certo que a negligência em termos de métodos contraceptivos e profiláticos nas relações sexuais é um problema decorrente da ideologia do patriarcado, em que a vontade dos homens ganha mais força que as necessidades de quaisquer outras pessoas. Mas a ideologia do nosso mundo real não é “sexo deve ser sem camisinha”, e sim “homens não vão se submeter a essas preocupações que afetam mais as mulheres”. Por isso, uma relação sexual sem preservativos, por si só, não alimenta ideologia nenhuma. Fica no campo da ficção, da fantasia e da imaginação, sem consequências negativas.

Mas, quando temos uma série de livros que normalizam um comportamento sexual masculino mais animalesco, sem mediações, em que nada importa além das saciações dos desejos do homem… Isso já é algo para questionarmos. “Mas, Ícaro, existem fetiches nesse comportamento ‘feral’ que geram prazer a pessoas de vários gêneros, não só homens.” Isso é verdade, mas, quando lemos um livro, a forma como esse fetiche é apresentado enfatiza o prazer de diferentes pessoas ou só reforça uma ideia de que homens têm necessidades sexuais “primitivas” e não há nada a ser feito além de saciá-las?

Realmente devemos tomar cuidado para não fazermos críticas bobas. Ficção não existe, e literatura não é didática. Mas não podemos ter tanta ingenuidade de achar que histórias imaginadas não vão impactar nosso mundo real. Elas vão. Para saber como vão impactar e o quanto vão impactar, é preciso ter atenção no movimento das ideias no mundo real. Qual lugar ocupamos na sociedade? O que defendemos? O que combatemos? Quais são as premissas do que defendemos? Quais são as premissas do que combatemos? Essas premissas e como elas vão sendo utilizadas mostram o sentido ideológico das imagens que usamos na literatura. Não existe neutralidade.

Por isso, atenção: realmente não há nenhuma obrigação da ficção ser um manual de instruções didático sobre o mundo ou sua conduta, mas a ideologia está lá. Temos todo o direito de desvelá-la e, quando necessário, criticá-la.


Fundo preto, um sinal circular de setas verdes, e a inscrição Atualizações.

Lâminas do Caos. Se você não acompanhou os episódios anteriores, é só clicar aqui, e abrir as newsletters na ordem de publicação, mas indo só na parte das atualizações.

Chegou o dia 9 de Contenda de 1420 e os Lâminas do Caos acordaram preparados para ir até a Mansão Bac Arat em Aslavi para o leilão, onde finalmente recuperariam o Pulmão da Montanha — um fole mágico capaz de forjar aço-rubi, necessário para os planos de Ezequias Heldret para destruir a área de Tormenta de Zakharov.

O único problema é que os convites para o leilão haviam sumido.

Todos do grupo se juntaram para procurá-los e perceberam que a janela estava aberta, com um rastro de sangue saindo dela. Perseguindo o rastro de sangue, eles chegaram a um casebre velho onde um vampiro maltrapilho dormia. Quando esse vampiro acordou, começou uma luta contra os Lâminas do Caos… Mas ele não estava em condições de vencer, então logo se transformou em morcego e fugiu. Os convites estavam lá. Dazam, o Vampiro Falido, os havia roubado.

Passaram o dia se arrumando para o leilão. A arrumação mais radical foi de Darius, que vendeu todos os seus equipamentos e comprou uma armadura pesada e uma espada longa, se autoproclamando sir Darius, um cavaleiro. Até contratou um escudeiro, o goblin Sven, que estava procurando emprego. (fizemos a mudança de classe porque Daniel não estava conseguindo jogar direito como Caçador).

À noite, todo o grupo se juntou numa carruagem cedida pela Taverna Lixo Trancado e foi para a Mansão Bac Arat. Passaram uns mau bocados no caminho, já que a carruagem foi atacada por Papa-dim (monstros que comem dinheiro). Arkon precisou descer várias vezes para consertar a roda da carruagem. Mas chegaram lá, tiveram um ótimo banquete, e foram ver os itens. Tinha muita coisa interessante. Além do Pulmão da Montanha, também havia um colar duplo mágico que permitiria Arkon a falar mesmo sendo mudo!

Mas os itens não eram a única coisa interessante. Um trio de medusas arrumou um barraco e, no meio do barraco, acabaram atacando os Lâminas do Caos. Eles se defenderam bem (e Arkon aproveitou para catar umas pérolas que as medusas derrubaram no chão no meio da confusão). Os seguranças quase botaram todos pra fora, mas Prinkster aparaceu para defendê-los e os levou para seus aposentos.

Na manhã seguinte, no dia 10 de Contenda de 1420, o Dia do Leilão, eles acordaram e foram para o salão. Serviram lá uma bebida verde que deixou Mérida se sentindo muito bem, mas fez Darius passar muito mal. De qualquer maneira, nem deu tempo de pensar muito na bebida. Prinkster começou a anunciar os itens do leilão, mas então o palco explodiu, matando o osteon — dessa vez, definitivamente.

Tudo ficou um caos, e no meio da confusão, Dazan, o Vampiro Falido, levantou-se do seu lugar, apontou para o grupo e disse: “Foram eles!”. Para piorar, um elfo disse que o Rei de Aslavi, o Lorde Ferren Asloth, tinha emitido cartazes de procurado e a descrição dos bandidos era idêntica aos Lâminas do Caos.

Eles fizeram de tudo para escapar, indo direto para o palco e atravessando a cortina. Por sorte, tinha uma porta de pedra que atravessaram e trancaram, deixando a multidão furiosa para trás. No meio desse cômodo escondido havia uma piscina absurdamente funda e um pedestal no meio, com uma urna. Do outro lado, outra porta, que estava trancada. Eles notaram que tinha uma chave na urna, mas Mérida usou a magia Compreensão e Detectar Perigos e percebeu que, caso eles pegassem a chave, acordariam uma hidra que estava dormindo no fundo da piscina.

Darius então teve a solução mais nobre e honrada, como o bom cavaleiro que (agora) é: jogou uma granada de bola de fogo na porta trancada e abriu um buraco para todos passarem.

Quando passaram, viram a sala do cofre, onde Prinkster — que havia morrido agora há pouco — guardava os itens do leilão. Confusa com a situação, Mérida em forma de leopardo foi até Prinkster. Mas ele mudou de forma e se tornou uma mulher de cabelos roxos, a assassina Rà, que havia sido contratada por Ferren Asloth para pegar o Pulmão da Montanha em Aslavi. Mas ela disse ter mudado de ideia, então pegou o fole mágico e repetiu a manobra de Darius: com uma granada de bola de fogo explodiu uma parede e fugiu.

Os Lâminas do Caos derrubaram os comparsas de Rà e a seguiram até o Lixo Trancado (não sem antes surrupiar todos os outros itens do leilão). Lá, Rà estava mantendo Agatha e Opritnik como reféns e desafiou os Lâminas do Caos para uma partida de Wyrt Dimensional — que é quase um duelo de Yu-Gi-Oh, muito perigoso.

Ela não contava é que a persistência e falta de noção dos Lâminas do Caos os tornavam perigosos para jogos assim, então Rà foi derrotada. Entretanto, a Guarda de Aslavi estava atrás deles. Pegaram todos os itens (incluindo o Pulmão da Montanha), e então acionaram o bastão de Rà. E, segundos depois, estavam no meio de uma praça em Vectora, a Cidade nas Nuvens.

Bem… Por hoje é isso. Até semana que vem.

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