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#22 — A problemática colonialista dos inimigos bestiais (ou sem rosto) na fantasia

Mais uma vez não tive tempo para escrever a newsletter, então vou repostar um texto em que questiono escolhas estéticas da literatura de fantasia que se alinham a ideologias coloniais.

Primeiramente, feliz dia das crianças! (e o texto de hoje não é temático, eu sou ruim nisso).

Devo avisar que, por causa das notas de rodapé, talvez o email fique cortado. Então é recomendável clicar ali em cima no Read Online para ler direto no site do Beehiv.

Dito isso, hoje falaremos de…

JAto de tinta verde sobre fudo preto com inscrição em branco: "Arte"

A Problemática Colonialista dos Inimigos Bestiais (ou sem rosto) na Fantasia

Publicado originalmente no Rascunhos Abertos em 12 de Abril de 2023

Aviso: este texto contém spoilers das séries “Anéis do Poder” e “Willow”.

Na série produzida pela Prime Video, “Anéis do Poder”, uma adaptação do universo criado por J. R. R. Tolkien, houve uma cena que gerou muitas discussões na internet. A cena em questão é um diálogo entre Galadriel, a protagonista, e Adar, até então mostrado como um vilão.

Adar fala sobre a criação de seu povo, os Uruk, e explica sua motivação para fazer tudo o que faz na série. No final, ele queria um lugar para que vivessem como um povo. Galadriel, porém, responde:

“Não. Sua raça foi um erro. Feita por escárnio. Mesmo que eu leve toda esta Era, juro erradicar todos vocês. Você, contudo, será mantido vivo para que um dia, antes que eu enfie a adaga em seu coração envenenado, eu possa sussurrar em sua orelha pontuda que toda sua prole morreu e que a praga da sua raça termine junto com você.”

Anéis do Poder, Episódio 6

Este é um claro discurso supremacista. Galadriel considera os Uruk como uma raça biologicamente degenerada, negando a ela qualquer humanidade (no sentido de Direitos Humanos mesmo), e seu juramento é uma promessa de genocídio. O que está em jogo para Galadriel, nessa fala, não é o que Adar e os Uruk defendem e nem mesmo o que eles estão fazendo. Se, no início da série, pensamos que Galadriel está encabeçando ainda uma guerra defensiva, nessa cena vemos que seu ideal é, na verdade, supremacista. Seu ódio não é mais defensivo, é uma ofensiva1.

Acredito que, para citar um exemplo mais extremo, isso lembre muito mesmo a Alemanha Nazista. Conforme foi apontado por várias críticas na internet e nas redes sociais, o percurso foi o mesmo: é verdade que a Alemanha do pós Primeira Guerra Mundial não estava em sua melhor situação e os sentimentos revanchistas com relação ao Tratado de Versalhes eram, em certo ponto, justificáveis. Porém o nazifascismo organizou esses ânimos numa narrativa supremacista, direcionou este ódio para os grupos de pessoas que eram considerados inferiores. No mundo perfeito dos nazistas, as raças inferiores seriam subjugadas e, em última instância, erradicadas. Só isso poderia resolver os problemas que os alemães enfrentavam.

Entretanto, acredito que este discurso de Galadriel não seja a primeira e única vez que o universo tolkeniano trouxe problemáticas de ordem supremacista. Com isso, não acuso J. R. R. Tolkien de nazismo. Não tenho a pretensão de julgar o caráter do autor que odiava colocar alegorias em suas histórias2 . A questão é que a desumanização já era algo presente na cultura européia do século XX e isso influenciou em muito as histórias que foram pensadas por lá. E como essas histórias influenciam as que nós pensamos, temos aqui um efeito cascata.

Certo… Então qual é o problema de Senhor dos Anéis (e mais uma porrada de outras histórias)?

Orc: Um Inimigo Bestial

O que, de fato, são os orcs no universo de Tolkien? Segundo o artigo na Wikipéia , designa uma raça de criaturas “deformadas e fortes e que combatem contra as forças do bem”. Segundo o mesmo artigo, uma “tradução” da palavra élfica “ork” seria “monstro, ogro, demônio”.

Na prática, os orcs em “Senhor dos Anéis” são o que chamo de inimigos bestiais. Embora eu não me recorde de nenhuma outra passagem parecida com aquela de Galadriel em Anéis do Poder, a representação dos orcs no universo de Tolkien foi sempre como uma força militar destrutiva que precisa ser impedida (com isso queremos dizer destruída). Não há negociações ou diplomacia com orcs, há guerra contra eles.

No filme “Senhor dos Anéis: o Retorno do Rei”, durante a batalha final, vemos Legolas e Gimli numa competição de “quem mata mais inimigos”. Nossa reação, ao ver aquela cena, é de divertimento. Até porque a cada orc (ou “homem do sul”) caído, mais próximo estamos da vitória das forças do bem. Vidas de orcs não importam. Pensando mais além… Orcs são mesmo seres vivos? Nós os consideramos assim?

Isso pode ganhar um caráter particularmente assustador em casos como a guerra entre Rússia e Ucrânia, tanto a de 2014 quanto a atual, em que ucranianos tem chamado os russos de orc3 , mas eu não diria que é um caso de ficção derramando sua influência sobre a realidade. Devo lembrar que a realidade influenciou a ficção primeiro.

Na introdução de seu artigo “Panamá, Iraque, Iugoslávia: Os Estados Unidos e as Guerras Coloniais do Século XXI” (presente no livro “Colonialismo e luta anticolonial: Desafios da Revolução no Século XXI”, Domenico Losurdo cita um escrito do historiador romano Tito Lívio4, que exalta uma intervenção militar romana nos Bálcãs que culminou na destruição da cidade de Corinto. É citado, logo em seguida, que Cícero (o filósofo) teria demonstrado pesar pela destruição de Corinto, mas destaca que esse pesar nunca foi e nunca seria reservado a destruição romana dos povos ditos bárbaros.

Seja pela forma de tutela 5 ou de destruição, a ideologia imperialista (que é a mesma ideologia colonial e supremacista) vai enxergar suas atividades de destruição, assassinato e genocídio como uma missão humanitária.

Libertar o mundo dos “orcs” é uma tarefa que as potências colonizadoras têm abraçado sem hesitação nos últimos séculos. Afinal, é assim que são vistos os povos massacrados. Os povos nativos da América também eram bestas sem alma6 , assim como os povos africanos escravizados7 . Eu nem precisaria citar o antissemitismo europeu levado a suas últimas consequências durante o Holocausto, mas talvez possa citar o perigo amarelo8 , a ameaça terrorista islâmica 9 ou os palestinos para o Estado de Israel10 .

Não é de se surpreender, portanto, que nas narrativas modernas, se tornasse tão popular a ideia maniqueísta de um inimigo inerentemente maligno que as forças do bem precisam destruir11 . No universo de Tolkien, este inimigo bestial são os orcs, mas em outras obras podem ser representados por várias outras criaturas míticas: demônios, dragões, zumbis12 , alienígenas, robôs, etc.

E, claro, ao repetirmos a mesma lógica surgida no auge das empresas coloniais, perpetuamos a ideia do inimigo bestial para os nossos dias. Daí é bem capaz que um monstro de uma história de fantasia popular seja apropriado por algum grupo supremacista para justificar a violência contra outro grupo, considerado inferior.

Outra Variação Sutil: os inimigos sem rosto

Eu diria que o problema da desumanização não é restrito a obras de fantasia medieval em que existem monstros. Não à toa, citei os robôs na lista de criaturas míticas onde o mal se encarnaria (pois é, Skynet, você também poderia ser considerada uma inimiga bestial). Porém, nem todos esses inimigos são monstros.

Na saga Star Wars, principalmente nos filmes e séries que retratam o período do Império Galático, temos nossos heróis recorrentemente lutando contra o exército imperial. É interessante notar, porém, que os uniformes da Aliança Rebelde sempre deixam à mostra o rosto das pessoas que se juntam às suas fileiras. Pode ser um figurante, mas quando vemos a morte de um aliado rebelde, podemos entender que uma vida foi encerrada ali. O mesmo, porém, não pode ser falado dos stormtroopers, os soldados imperiais.

Soldados com armaduras brancas e fuzis a laser enfileirados num cenário de neve e, atras deles, um palanque gigantesco onde um homem discursa sob uma bandeira vermelho sangue.

Interessante como os batalhões imperiais usam muito a estética nazista da Segunda Guerra Mundial, né? Mas identificá-los com os nazistas não faz com que a ausência de rosto (e humanidade) seja perdoada. Sem ideologia garveyísta por aqui.


Podemos até saber que, por trás daquela armadura, há uma pessoa. Mas, antes que “Star Wars: O Despertar da Força” inserisse o personagem Finn, nunca paramos para imaginar que alguém ficaria de luto pela morte de um stormtrooper. As vidas deles não são descartáveis apenas para o Império, mas também para a Aliança Rebelde (os heróis) e para nós, os espectadores. Eles são como os inimigos bestias. São inimigos sem rosto.

Sim, talvez o fato de os soldados imperiais terem sempre o mesmo uniforme e nunca mostrarem seus rostos se relacione a uma tentativa de crítica à uniformização militar, em que a individualidade dos soldados se perde. Entretanto, tenho razões para acreditar que se trata apenas de apresentar inimigos sem rosto. Os clone troopers, ancestrais dos stormtroopers, são desenvolvidos na série animada “A Guerra dos Clones”, e logo nos apegamos a cada um deles: Comandante Rex, Comandante Cody, Fives, Echo (que vai ser um dos protagonistas série “The Bad Batch”)… Nós os vemos sem o capacete, nós notamos sua personalidade. Quando um clone trooper é abatido, sua morte é sempre lamentada. A formação militar do Império já estava ali com os clone troopers, mas como não são inimigos, não são mostrados como “sem rosto”.

Entretanto, a partir de “Star Wars III: A Vingança dos Sith”, quando é dada a Ordem 66, aquela na qual devem matar todos os jedi (heróis), qualquer rosto que os clone troopers teriam adquirido desaparece. Se tornam inimigos sem rosto tais como seus sucessores, os stormtroopers.

Devo dizer, porém, que os inimigos sem rosto não se restringem apenas à fantasia e ficção científica. Filmes de guerra (principalmente os estadunidenses) costumam usar muito essa tática. Cada indivíduo do batalhão estadunidense tem um nome, mas seus inimigos são só “os japoneses”, ou “os chineses”, ou “os russos”. Algumas vezes, como é o caso de Top Gun: Maverick13, o inimigo nem chega a ser nomeado.

Piloto d caça com capacete completamente preto e uma estrela vermelha.

Piloto soviético de um MIG-28 no primeiro filme “Top Gun”. Dá nem para saber quem é o ator.

No fim, o inimigo sem rosto tem o mesmo efeito do inimigo bestial: retiramos a humanidade destes personagens. Então, se repetíssemos a fala da Galadriel dizendo: “vou matar todos os insira aqui o inimigo bestial ou sem rosto de sua preferência”, não pareceria tão horrível assim.

Migalhas de Esperança

Em “Willow”, filme da Lucasfilm em 1988, embora tenhamos muitos elementos interessantes (no tropo do Escolhido, os dois escolhidos são: uma bebê menina e uma raça chamada newlyn — que são tipo os hobbits de Senhor dos Anéis, porém o ator realmente é uma pessoa com nanismo!), ainda temos um exército que é ao mesmo tempo bestial e sem rosto: o exército da Bavmorda, a vilã da história. Entretanto, na série recente produzida pela Disney+, temos uma humanização destes inimigos bestiais/sem rosto.

No episódio 5, “Mata Selvagem”, o grupo de Elora Danan (a bebê do filme, agora crescida) acaba topando com o acampamento de um grupo independente conhecido como Ladrões de Ossos. Neste episódio, Jade (uma das melhores personagens) descobre que é filha do General Kael — general daquele exército sem rosto do filme original, cujo rosto era sempre tampado por uma máscara de caveira. Os Ladrões de Ossos eram justamente aquele exército sem rosto.

Então descobrimos a origem daquele exército: eram escravizados de Galladoorn, conquistando sua liberdade em troca de se tornarem a força militar de Nockmaar, o reino da vilã Bavmorda. Temos até uma fala interessante de Scorpia, líder dos Ladrões de Ossos e recém-revelada irmã mais velha de Jade:

“Os exércitos de Tir Asleen e Galadoorn [reinos “do bem”] nos perseguiram. Eles nos temiam. E deviam temer. Cedo ou tarde revidaríamos.”

Willow, Episódio 5

E quando Jade pergunta porque Tir Asleen a havia levado e criado, Scorpia responde:

“Que melhor jeito de evitar uma revolta do que roubar o futuro deles e criar uma criança para acreditar que os sequestradores eram os heróis? Ganhar a lealdade e transformá-la num soldado?”

Willow, Episódio 5

Isso foi um bom jeito de desfazer o inimigo sem rosto.

Vemos algo do tipo também em “Star Wars VII: O Despertar da Força”, quando conhecemos o personagem Finn. No conflito que se dá nos primeiros minutos do filme, vemos um stormtrooper lamentando a morte de um companheiro, que mancha seu capacete de sangue. Em seguida, este mesmo stormtrooper se recusa a cumprir uma ordem de execução sumária.

Através de Finn descobrimos que (pelo menos nesta época), os stormtroopers da Primeira Ordem (grupo neonazista, ops, grupo neoimperial) criam bebês para serem soldados, dando-os número de série em vez de nomes. É uma ótima reinterpretação dos inimigos sem rosto. Agora eles não são sem rosto por escolha do roteiro. São pessoas que foram despojadas de sua individualidade.

Para ser justo, o mesmo pode ser dito de Adar e os Uruk em “Anéis do Poder”. Não me recordo de nenhuma outra tentativa de humanização dos orcs na obra tolkeniana e suas adaptações. Isso sem contar a contratação de pessoas negras para serem elfos, numenorianos, anões e hobbits.

Da mesma forma que o discurso de Galadriel ferrou o esquema todo, tivemos algumas coisas que neutralizaram o avanço em Willow e em Star Wars. No caso de Willow, ainda temos os trolls, que embora tenham ganhado agora uma civilização, ainda são apresentados daquele jeito “selvagem” que os orcs são apresentados em “O Hobbit” 14 . A menos que surja mais complexidade entre os trolls, com mais de uma cultura sendo representada (alguma que não seja necessariamente aliada da Megera, por exemplo), eles ainda seriam o estereótipo dos inimigos bestiais. Além disso, não sabemos ainda como serão tratados os Ladrões de Ossos… Serem ex-escravos de Galadoorn e Tir Asleen é uma situação complexa que pode trazer conflitos morais bem pesados para Elora Danan e seus amigos.

Só espero que Willow não siga o caminho da terceira trilogia de Star Wars. Além de Finn, nenhum outro stormtrooper foi humanizado. A Resistência nem sequer pensou em operações como resgatar os bebês destinados a se tornarem stormtroopers. Finn é um caso isolado e ignorado15 . Para piorar, todas as tentativas de complexificar o universo Star Wars no filme “O Último Jedi” foram jogadas pelo cano de descarga em “A Ascenção Skywalker”. Ao menos nestes filmes canônicos de Star Wars, não temos nenhum desenvolvimento melhor da questão.

Mas enfim… Numa pequena lista de histórias de fantasia nas quais (pelo menos em minha memória) não consigo notar o problema, eu recomendaria “Avatar: A Lenda de Aang”(mas não “A Lenda de Korra, que só sabe fazer caricatura de movimentos políticos); “She-Ra e as Princesas do Poder”(o remake da Netflix); “Voltron” (remake da Netflix); “O Príncipe Dragão (Netflix);  o livro “Atlas Ageográfico de Lugares Imaginados”, de Ana Cristina Rodrigues; a duologia de livros “Um Estranho Sonhador”e “A Musa dos Pesadelos”, de Laini Taylor; o Ciclo Terramar, da Ursula K. Le Guin (recebendo novas traduções pela Editora Morro Branco); e, por fim, todos os livros da N. K. Jemisin. Em vista da quantidade de fantasia de viés colonial sendo produzida, são apenas migalhas de esperança, mas pelo menos temos essas migalhas!

Tentando superar o viés pró-colonialista ao representar inimigos na fantasia

Não só de migalhas viveremos nós e claro que é sempre difícil esperar esse engajamento vindo de grandes indústrias. Entretanto, acredito que leitores de fantasia já podem pensar e questionar estas estruturas enquanto escritores podem subverte-la mais profundamente.

Primeiramente, eu não diria que um inimigo bestial seja definido por não ser um Homo sapiens. Elfos, anjos, centauros, minotauros, orcs, ou qualquer espécie com cultura desenvolvida já são imaginados por diversos sistemas mitológicos há séculos, sem necessariamente ter um viés colonialista. Claro que só podemos fazer uma boa avaliação do papel que possuem originalmente no imaginário das pessoas observando a cultura original de onde vêm. A ideia aqui não é dizer que só estamos liberados a criar vilões Homo sapiens sapiens, a ideia é evitar a retórica de desumanização.

Não há motivos biológicos para alguém se tornar uma ameaça. Mesmo se imaginarmos um mundo em que surge uma espécie que, para respirar, exala um gás tóxico para humanos, não poderíamos tratar a existência dessa espécie como uma ameaça. Os humanos normais e essa espécie poderiam, com o passar do tempo, encontrar maneiras de conviver sem se aniquilar. Tratar alguém como ameaça (transformando-os em indivíduos bestiais ou sem rosto) ou se tornar uma ameaça (ameaçando as “bestas sem rosto”) é, antes de tudo, uma decisão política.

Colonialismo é uma cultura, então o melhor caminho que consigo pensar para evitar inimigos bestiais e sem rosto é o multiculturalismo. Pensemos na nossa espécie, Homo sapiens sapiens. Quantas culturas temos? Quantas culturas já existiram? Eu nem sei contar. O sonho colonial e supremacista de uma humanidade artificial e homogênea não pode (e não deve) ser alcançado. Provavelmente o mesmo aconteceria se outra espécie, que não Homo sapiens sapiens, desenvolvesse cultura. Se existissem elfos, eles não seriam uma unidade cultural homogêna, tampouco orcs, minotauros, alienígenas e etc.

Sendo assim, digamos que seu Reino Ficcional Humano esteja sofrendo ataques de goblins. Não faz sentido que seu reino humano seja o único reino humano existente (exceto, talvez, com muitas ressalvas, num cenário pós-apocalíptico). Da mesma forma, não faz sentido imaginar que o grupo goblin que ataca o reino seja o único existente. Muito menos que goblins estão atacando humanos violentamente porque “é isso que goblins fazem”. Mas e quanto aos inimigos sem rosto? Certo, vamos voltar ao General Kael de Willow.

Não tem problema nenhum mostrar esse general com caveira na cara. A questão é: por que a caveira? Quem ele é? Por que aqueles outros soldados o seguem? Quem são essas pessoas que se tornaram a força militar de Nockmaar? Ao adaptar os Ladrões de Ossos na série “Willow”, não precisaram tirar essa estética deles. Simplesmente agora temos uma unidade cultural com uma história, temos pessoas em vez de uma massa homogênea que só segue ordens da Bavmorda (como era no filme original). Mesmo sendo os vilões, eles lutam por alguma coisa.

Além disso, em cenas de batalha, se vemos o “lado do bem” lamentando seus mortos, acredito ser justo ter algo do tipo do “lado do mal” também. Melhor ainda se abandonarmos a noção maniqueísta de “bem” e “mal” para falar de pessoas.

Claro… Só o multiculturalismo não é o suficiente para resolver o problema da lógica colonial nas histórias de fantasia (mas vide N. K. Jemisin para notar que é um puta recurso!). Afinal, podemos muito bem construir um mundo com culturas muito bem definidas e, mesmo assim, descrever uma história em que a “cultura do bem” coloniza/extermina a “cultura do mal”, de uma maneira celebratória e não-crítica. Isso acaba nos levando a falar de…

Guerra

Certo, já nem estamos falando mais de inimigos bestiais/sem rosto. Eu já deveria ter encerrado este artigo. Entretanto, vou me permitir este apêndice para falar de guerra nas histórias de fantasia.

Algumas pessoas podem chegar à conclusão de que só o fato de haver guerra entre duas etnias (ou espécies) diferentes já é uma problemática colonial. Eu discordo, até porque a violência pode (e é) usada como defesa anticolonial16 . Além disso, conflitos entre grupos humanos existem desde antes do surgimento de uma cultura colonialista.

Há muitos motivos diferentes para a guerra. Um povo vive numa região em que não é possível produzir recursos para a subsistência. Sem que outro povo, de outra região, compartilhe de outra maneira o que têm, esse povo em escassez provavelmente seria levado a iniciar uma guerra de saque. Poderiam desenvolver até uma cultura específica para isso, transformando a guerra num ritual religioso. Do ponto de vista deles, a guerra se torna uma questão de sobrevivência. E até que seja dada outra alternativa… É mesmo uma questão de sobrevivência.

Falando em rituais religiosos, pode ser que algum povo tenha uma relação diferente com a morte. Sendo assim, podem ocorrer batalhas rituais, em que morrer não seja algo ruim. Obviamente isso traria um grande choque se esta civilização empreender uma batalha ritual com outra civilização que vê a morte em batalha de forma negativa. Mas, nesse caso, o objetivo da guerra não é supremacia. Uma história desse tipo teria que tratar sobre como as duas civilizações poderiam se entender e chegar a um acordo.  

Poderíamos até ter mesmo um povo que se alimenta de outro, da mesma forma que nós nos alimentamos de gado ou galinha. Isso não é impensável. Como eu disse antes, tornar-se uma ameaça é uma decisão política. Se isso ficar claro na história, é possível até lidar com questões coloniais sem celebrá-la, colocando-as sob uma lente crítica para os leitores.

No final, a questão sobre guerras é: como se dá o choque inter e intracivilizações? Dificilmente alguém chegaria à conclusão de genocídio, a menos que estejamos falando de uma lógica colonial. Durante a guerra, pode ser que muitos grupos tentem encontrar alternativas a ela: diplomacia, tratados de não-agressão, estabelecimento de comércio, etc. Além disso, dentro das próprias civilizações, haveria posições divergentes. Na cultura da guerra ritual, poderiam discutir os limites disso. Na civilização que se alimenta de outros, poderiam haver movimentos “veganos”, ou que se opõem a se alimentar de espécies com cultura desenvolvida.

Esse tipo de desenvolvimento, de embate, de contradição e de movimento vai acabar emulando a dinâmica da realidade. Nenhuma dessas soluções é uma utopia anticolonial, todas elas são outros tipos de relações sociais existentes para além daquela que é hegemônica.

Então sim, vocês podem escrever histórias de fantasia épica que contem guerra sem necessariamente glamourizá-la ou cair em qualquer armadilha de celebração colonial.

Conclusão

Gostaria de reforçar mais uma vez que, com toda essa crítica, eu não estou esperando nada da Walt Disney Studios ou qualquer megaempresa de entretenimento. Por mais que eu tenha uma torcida interna para a segunda temporada de “Willow” trabalhar melhor a questão envolvendo Tir Asleen e os Ladrões de Ossos, também não espero lá grandes coisas.

E, apesar dos pesares, gostei de “Anéis do Poder”. Torço para que melhorem as relações com os orcs nas próximas adaptações do universo de Senhor dos Anéis, mas também não me surpreenderei se tivermos outros discursos colonialistas tipo esse aí da Galadriel. Não vim aqui cobrar responsabilidade social de empresa multibilionária, e eu quero mais é que monopólio de mídia se exploda.

Minha maior intenção, porém, é que nos desprendamos de uma tendência colonialista (portanto imperialista, supremacista e racista) incutida na cultura e que ainda faz parte dos gêneros fantásticos. Minha intenção é que, quando formos pensar novas histórias, possamos partir de outros pontos. E minha intenção também é que, quando formos apreciar nossas histórias favoritas, pensemos por dois segundos que pode haver uma propaganda ali de ideologias que não concordamos de verdade.

Considerações de 2025

Mantenho ainda minhas posições declaradas neste texto e acrescento um detalhe: streamings são perigosos! A Disney+ excluiu totalmente a série Willow de seu catálogo, então fica parecendo que ela nunca existiu. Tudo bem, cancelada, não vai ter segunda temporada, a gente vai morrer de curiosidade pelo gancho (fanfiqueiros??), mas QUE PERIGOSO! Ficou nem registro. O único jeito é procurar arquivos de quem pirateou para poder assistir.

Fundo preto, um sinal circular de setas verdes, e a inscrição Atualizações.

Meus estudos. Parte do motivo de eu estar aqui sem tempo para escrever as newsletters e retomando textos antigos é porque entrei numa maratona de estudos referentes ao Grupo de Estudos Crise da Psicologia e História da Psicologia, que pega bastante filosofia da ciência também; e os materiais do curso de capacitação Nós na Rede, elaborado pela Fiocruz, sobre a Rede de Atenção Psicossocial. Esses meus estudos vão render muitas reflexões, mas eu acabei acumulando muito material para estudar de uma vez e aí nem dá tempo de compartilhar as reflexões ainda. Mas aguardem!

Visita da Família. Não vejo meus pais desde 31 de Dezembro de 2024 e eles estão vindo para cá nessa semana. Bom, quando esta newsletter for enviada, eles já estarão aqui. Significa que eu vou estar ocupado com a visita da minha família e não vou escrever nenhum texto novo para a próxima semana. Mas tá tudo bem, afinal, o texto que compartilharei aqui é quase uma continuação do que mandei hoje.

E ficamos assim. No mais, até semana que vem.

1  Em episódios posteriores, parece que Galadriel está repensando a própria fala. Afinal, Adar respondeu que o que ela falou parece muito “do mal”. Enfim, não penso que seja o suficiente para resolver, mas né? Pelo menos tentaram desfazer a cagada do episódio anterior.

2  Só que o queridasso J. R. R. Tolkien também aderiu de verdade a ideias eugenistas que circulavam na época mesmo após a Segunda Guerra Mundial. Deixo esse vídeo do Ora, Thiago como recomendação sobre “Senhor dos Anéis e Questões Raciais

3  Para Christopher MacLachlan, autor do texto (spectator.co.uk/article/why-are-ukrainians-calling-russian-invaders-orcs-/ ), não é difícil imaginar o porquê dos ucranianos dizerem isso sobre os russos invasores, uma vez que orcs são traiçoeiros, violentos e destrutivos. A guerra entre a Rússia e a Ucrânia é um fenômeno complexo do qual eu ainda não tenho competência de discutir, mas acho, no mínimo, curioso que o apelido “orc” tenha pegado uma vez que temos evidência de presença neonazista nas forças da ordem ucraniana e outras questões étnico-nacionais daquela região

4  “Há, sobre a terra, um povo que não hesitou em assumir as despesas, as fadigas e os perigos de uma guerra pela liberdade dos outros povos. Não o fez por vizinhos ou próximos ou moradores do mesmo continente. Não! De fato, esse povo singrou pelos mares para impedir que, em todo o mundo, existisse uma forma de governo injusto e para fazer que, por toda parte, pudesse reinar a lei e o direito humano e divino.” (p. 20, citado de “Ab Urbe condita libri”)

5  “(…) porém [Cícero] insiste que o expansionismo romano e sinônimo não de um mando egoísta (imperium), mas de uma benévola ‘tutela (patrocinium) do mundo’ (…) A ideologia ‘humanitária’ e ‘ética’ atravessará profundamente a história da tradição colonial e imperial, a história da dominação enquanto tal ” (Domenico Losurdo, Colonialismo e luta anticolonial, p. 20).

6  “A partir dos anos [16]60 começa a surgir uma imagem, que depois é reiterada, de que a expansão portuguesa no sertão está sendo parada por um muro que o demônio criou no sertão. Um muro de índios bárbaros, ou índios selvagens, que resistem à presença portuguesa. Essa guerra se define como total efetivamente numa reunião que ocorre na Bahia em 1669. E nessa mesa grande que eles chamam uma ‘Grande Reunião’, se estabelece então que a partir de agora as guerras contra todos os índios do sertão são todas guerras justas porque os índios do sertão são bárbaros que resistem à expansão da fe” (fala do historiador Pedro Puntoni no episódio 1 do documentário “Guerras do Brasil.doc”, disponível Na Netflix)

7  “Em seu livro de 1869, Gênio Hereditário, ele [sir Francis Galton] computou pessoas famosas em várias esferas da vida que também tinham parentes famosos, numa tentativa de estimar o quão fortemente a habilidade natural poderia ser esperada dentro das próprias famílias. Mas estes cálculos também seguiram direções previsivelmente racista. Em um capitulo chamado ‘O Valor Comparativo de Diferentes Raças’, ele avaliou que ‘o padrão intelectual médio da raça negra é cerca de dois graus abaixo do nosso [branco]’, o que ele atribuiu à hereditariedade. Galton expressou uma aversão frequente aos africanos, a quem chamou de ‘selvagens preguiçosos e tagarelas’, em uma carta que escreveu ao The Times, defendendo que a costa da África fosse dada aos colonos chineses [que eram brancos britânicos] para que eles pudessem ‘suplantar a raça negra inferior’”. (Aubrey Clayton, “How Eugenics Shaped Statistics”, revista Nautilus , tradução livre auxiliada pelo Google Tradutor, grifo meu)

8  Segundo a Wikipédia ,  perigo amarelo “e uma metáfora racista que descreve um perigo e uma ameaça existenciais para o mundo ocidental. (…) A ideologia racista do perigo amarelo é uma ‘imagem central de macacos, homens inferiores, primitivos, crianças, loucos e seres que possuíam poderes especiais’”.

9  “Semelhante dominação necessita de uma nova legitimação formulada na teoria do choque de civilizações. Esta teoria tem a vocação de suscitar comportamentos de pânico e de medo com o objectivo de suscitar uma procura de protecção e uma aprovação das guerras. Desde o discurso do terrorismo que requer umas guerras preventivas até à teoria da grande substituição passando pelas campanhas sobre a islamização dos países ocidentais e sobre os refugiados vectores de terrorismo, o resultado esperado é sempre o mesmo: medo, pânico, procura de segurança, legitimação das guerras, construção do muçulmano como o novo inimigo histórico. A islamofobia é efectivamente uma verdadeira idade do racismo, que corresponde às mutações de um capitalismo senil. Ou seja, que já nada pode trazer de positivo à humanidade, a não ser a guerra, miséria, e a luta de todos contra todos. Não existe um choque de civilizações mas sim uma crise de civilização imperialista que exige uma verdadeira ruptura. O que tratam de evitar por todos meios não é o fim do mundo, é o fim do seu mundo.” (Said Buamama, “Colonialismo, Neocolonialismo e Balcanização”, disponível no portal do PCB )

10  “Pois bem, aqui podemos ler que, ainda que seja uma democracia, Israel é uma ‘democracia de casta segundo o modelo da Antiga Atenas’ (que por fundamento mantinha a escravidão dos bárbaros), ou seja, segundo o modelo do ‘Sul dos Estados Unidos’ nos anos da discriminação racial contra os negros. O quadro que Israel apresenta é claro: ‘A sua minoria de árabes isreaelenses vota; mas tem um estatuto de segunda classe sob muitos outros aspectos. Os árabes, sob seu governo na Cisjordânia ocupada, não votam e estão privados de quase todos os direitos’. A prática da discriminação contra os palestinos caminha pari passu com sua ‘discriminação’.” (Domenico Losurdo, Colonialismo e luta anticolonial, p. 42)
“Das colunas do Internacional Herald Times, expoentes progressistas da comunidade judaico-estadunidense lançaram um grito de alarme: não somente os palestinos são objetos de ‘desumanização’, mas também os judeus que exprimem um julgamento crítico complexo sobre Israel, chegando às vezes a colocar em discussão o sionismo enquanto tal.” (Idem, p. 48)

11  Tensa esta apropriação do conceito de maniqueísmo, né? Não vou falar do maniqueísmo no zoroastrismo e suas consequências no judaísmo e cristianismo, mas já deu para perceber para onde se encaminham este Bem e Mal que combatem até um aniquilar o outro.

12  No vídeo “Coronavirus, Apocalipse Zumbi e Colonialismo”, Thiago Guimarães fez uma ótima relação com a tradição do apocalipse zumbi e essas ideias de medo de uma reação anticolonial.

13  “Reaparece o personagem central hiper-estereotipado de um homem valente e ‘correto’, uma apresentação individualizada do unilateralismo estadunidense, desta vez inaugurando uma nova geração de jovens a um inimigo difuso, tecnologicamente ameaçador e ‘invisível’ (já que ele não é nomeado explicitamente no filme), que ‘ameaça a paz e a segurançados estadunidenses e do mundo ocidental” (Pedro Marin, “Propaganda, recrutamento e hegemonia em ‘Top Gun: Maverick’”, texto na Revista Opera)

14  Os orcs eram muito rudes, e beliscavam sem dó, riam e gargalhavam com suas vidas horríveis e cruéis, Bilbo estava ainda mais infeliz do que na ocasião em que o troll o suspendera pelos pés. (…) Os orcs começaram a cantar, ou grasnar, e marcavam o ritmo batendo na pedra os pés chatos e sacudindo os prisioneiros. (…) O som era verdadeiramente horripilante. As paredes ecoavam o bate rebate! E o esmigalha, estraçalha! E o riso hediondo daquele ho, ho! Meu rapaz! O sentido geral da canção era evidente até demais, pois os orcs pegaram chicotes e, com um zunido, estalido!, faziam-nos correr a mais não poder na frente deles (…) Ora, os orcs são cruéis, malvados e perversos. Não fazem coisas bonitas, mas fazem muitas coisas engenhosas. Podem cavar túneis e minas tão bem quanto qualquer um, exceto os anões mais habilidosos, quando se dão ao trabalho, embora geralmente sejam desorganizados e sujos. Martelos, machados, espadas, punhais, picaretas, tenazes, além de instrumentos de tortura, eles fazem muito bem, ou mandam outras pessoas fazerem conforme o seu padrão, prisioneiros e escravos que têm de trabalhar até morrer por falta de ar e luz. Não é improvável que tenham inventado algumas das máquinas que desde então perturbam o mundo, especialmente os instrumentos engenhosos para matar um grande número de pessoas de uma só vez, pois gostaram muito de rodas e motores e explosões, como também de não trabalhar com as próprias mãos além do estritamente necessário; mas naqueles dias e naquelas regiões selvagens ainda não tinham avançado (como se diz) tanto. Não odiavam os anões de modo especial, não mais do que odiavam tudo e todo mundo, particularmente os ordeiros e prósperos; (…) de qualquer forma, os orcs não se preocupam com o que capturam, desde que tudo seja feito com habilidade e segredo e os prisioneiros não sejam capazes de se defender” (O Hobbit, J. R. R. Tolkien, p. 61–63.  3ª edição física da Martin Fontes publicada em 2009, grifo meu)

15  Rumores de que John Boyega tenha sido boicotado pela Walt Disney Studios por sua posição contrária ao apartheid que o Estado de Israel promove contra o povo palestino, além de ter participado aberta e ativamente dos movimentos Black Lives Matter.
Nas palavras do ator “Quando se tratava de Kelly Marie Tran, quando se tratava de John Boyega, você sabe, foda-se tudo. Então o que você quer que eu diga? O que eles querem que você diga é ‘Gostei de fazer parte disso. Foi uma ótima experiência’. Nah, nah, nah. Vou aceitar esse acordo quando for uma ótima experiência. Eles deram todas as nuances a Adam Driver, todas as nuances a Daisy Ridley. Sejamos honestos. Daisy sabe disso. Adam sabe disso. Todo mundo sabe. Eu não estou expondo nada.” (fonte: Revista Rolling Stone)

16  Recomendo a leitura do texto “Exigir a não-violência dos oprimidos é um critério impossível que ignora a História”, de Justin Podur e traduzido pela Revista Opera

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